A infância salta aos olhos quando a alma precisa de refúgio.
Dessa vez minha alma foi longe, muito longe,
Ao lugar onde o sol se esconde quando não quer ser visto,
Onde a timidez da sua luz dá vez e voz à lua que pare o luar.
Vi-me menino, e vi o tempo brincando ao redor de corpos esguios,
Enquanto o vento vestia nossos lânguidos sorrisos de um tom de ternura;
Meus irmãos e eu, peças soltas no quebra-cabeça da vida,
Existência frágil de flores que nascem à beira da estrada.
Naquele tempo a fome parecia perseguir-nos,
A pobreza fazia careta, enquanto o estômago gemia a prece silenciosa:
‘O pão nosso de cada dia nos dá hoje’,
E a alma franzida de meninos que não sabiam dizer a oração do Pai Nosso,
Dava-se à sobrevivência da oração que em nós se dizia: “livrai-nos do mal”.
O mal não resistia à prece nem à pressa daqueles meninos,
O “Pai Nosso” sempre do céu, santificava o seu nome na nossa lida,
Pois víamos o seu “reino” vir a nós de formas diversas,
E assim, Ele não nos “deixava cair em tentação”.
Um simples pau-de-sebo foi o bastante para que “fosse feita a Sua vontade”.
No nordeste, pau-de-sebo é brincadeira de criança,
A rua fica em festa, a praça se ilumina de amor e alegria,
Enquanto cravado no chão, um madeiro cheio de sebo e gordura
Com presentes no topo bem alto desafia os mais audaciosos,
Ou, como descobri naquele dia, os mais carentes.
Todos tentavam à sua vez subir para pegar os presentes,
Mas seus corpos deslizavam à medida que subiam sem sucesso,
Naquele dia, eu me lembro, havia macarrão, balas, carne,
Coisas que meninos pobres não conseguem sem escorregar muitas vezes.
Eu vibrava a cada queda, a cada escorregão porque tudo era muito belo,
Até que meu irmão mais velho decidiu matar a nossa fome.
Admirado com sua coragem comecei a orar: “O pão nosso de cada dia dá-nos hoje”.
A alegria tornou-se angústia enquanto eu dizia: “não o deixe cair”.
Era o modo estranho de orar em forma de vida e necessidade.
Meu irmão passou terra molhada no corpo,
lama contra sebo,
Atrito que gera realização de sonho.
Ele subia cada centímetro enquanto eu dizia: "teu é o poder".
Agora todos o viam lá no alto,
Meu irmão mais perto de Deus e da comida,
Pau-de-sebo vencido,
Ele tocou os presentes, o que lhe assegurava possessão,
Seu corpo cansado, movido por graça,
Dali, vendo-o no alto do madeiro eu dizia a Deus: “tua é a glória e a força”.
Todos o viam descer sorridente,
ressureição de um corpo morto de cansaço,
sua mãe celebraria seu ato de amor,
seus irmãos comeriam do suor do seu rosto,
seu corpo esqueceria para sempre o que agora recordo.
Ainda me lembro desse dia,
Dia no qual o “Pai Nosso que está nos céus”,
Ensinou-me que Ele é quem santifica as nossas vidas
Para que “seja feita a Sua vontade” mesmo através de um pau-de-sebo.