segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Soul



Das borboletas quero a leveza.
Das abelhas o mel,
E das margaridas o tom incerto para colorir os céus.

 Sou zangão zangado voando por ai.
A roca do tempo tece fios de lua e flor.
Minha pátria é copo-de-leite no exílio de jardins partidos.

Quero ser maré vermelha de um rubro mar atravessado a pé.
Quero ser arco-íris onde a íris dos olhos almeje a eternidade.
Pela porta do amor entreaberta o meu coração contempla a finitude.

Sou vagalume vagando ao lume de fogueiras velhas.
As cinzas ainda queimam e a saudade é lenha nova.
Sinto-me vento rasteiro bailando nos quintais de outrora.

O sino toca e de longe se ouve a balalaika.
O candeeiro ainda incide a fumaça à luz da lua.
A beleza despe-se ante os olhos fartos da mesmice.

Sou poeta que sangra poesias.
Minhas veias esguicham os versos enquanto morro de amor.
Morre-se de amor? Sim, quando amor morre tornando a vida um vício.

Quero ser silêncio, pois calado passo por sábio.
Quero da palavra o néctar, vinho amargo posto sobre brasas.
Quero o tempo que me resta, para viver o que em mim ainda resta.
O que resta em mim que mar e céu já não o possuam?
O que resta em mim é a esperança e de mim
Se partido, restará saudade, alegria e paçocas de amendoim.  

Sigo feito vento afeito ao afeto que me afeta.
Afasto-me de tudo que se chama angústia.
Quero envelhecer feliz e sentir o perfume aromático de narguilés.

Quero ler bons livros, escrever e contar histórias,
Quero escrever poemas de amor que se eternizem.
Quero simplesmente ser diamante encontrado em cavernas escuras.

Sou saudade, e assim sendo, em sendo nada sou tudo.
Sou areia e meu coração vive de alvas dunas.
Sou apenas fôlego, um respirar suave no compasso da felicidade. 


Sou apenas soul.
Soul apenas,
Apenas sou.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Portas Velhas Da Memória - Para MICKEY, meu amigo.


O ferrolho da velha porta ainda range a mesma melodia.
Como as portas, as cordas do coração rangem suas dores.
Minhas memórias saltam entre os olhos e o coração.
Há memórias que parecem gonzos de portas velhas,
Outras se parecem com fantasmas perdidos.
As memórias são como ferrolhos de portas esquecidas e sem trancas,
Rangem na medida em que se abrem para o passado para dar passagem às lembranças mortas.
Velhos fantasmas de emoções idas de dias de outonos em horas partidas. 

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Eudaimonia: Felicidade!


Um dia plenamente feliz é como chuva de granizo no sertão,
Ocorre, mas rareia-se o fenômeno a cada instante que passa.  
Ontem eu vivi um dia feliz.
Andei sob neblina e peguei a estrada sob o vento fresco da manhã.
Fiz o que mais gosto rumo ao tempo no sabor das palavras.
Fotografei pássaros e eternizei a aurora antes de discorrer poemas de amor.
Conversei com filósofos, teólogos e mulheres batalhadoras e amáveis.

Ouvi o Dalai Lama ensinar-nos a não atolarmos os pés na lama do mundo: a ganância dos homens.
Tímido, brejeiro e lúcido Drummond sussurrou ternuras.
Ontem eu cantei o Jobim, recitei Cecília e Lispector, tudo que amo.
Ontem foi um dia feliz, como outros dias felizes que a memória ainda mantém.
Como não ser feliz caminhando com grandes almas? Titãs do saber.
Comemos peixe e pão assados e achados na fogueira a beira do Mar da Galiléia.
O Nazareno esteve entre nós e nos fez vê-lo ressurreto e frondoso.   

Ontem vi professores assentados como amigos à volta do fogo.
Ao sabor do saber soubemos, ser simplesmente sérios, sensatos e sensíveis.
Não faltaram os helênicos nem os helenistas globalizados.
Epicuro deu o ar de sua graça enquanto colhia as rosas no seu Carpie Die.
Enquanto, parado ali, Sócrates se escuta reflexivo com a mão ainda sobre o queixo.
Platão negou-lhe a sicuta visto que era tempo de eudaimonia: felicidade.
 
Fernando Pessoa; que pessoa! Estava lá, segurando a lamparina em pleno dia.
O que ele procurava? Acredito que procurava o Nietzsche, ece homo, o Pai do Dionísio.  
Não faltou alegria na festa. As mulheres eram apenas silêncio na face, mas a alma sempre em folguedos.
Paulo Coelho, o Alquimista, ainda luzia o seu olhar desbravador entre nós.
Schopenhauer, mal humorado é que não me parecia muito bem, pois, tinha uma cara de necessidade e o tédio queria dominá-lo.
Camus insistia em colocar lenha na fogueira, sabia que a felicidade é pão que se come em comunhão.

Loucura mesmo fora Esrasmo de Roterdã falando do seu amor-próprio e rindo de alegria de Russeau que dançava em sua pajelança.
Ontem a felicidade escrita em papel de seda entrou como em cinema mudo entre nós e de bengala e chapéu preto meio surrado encantou.
Seus pés ligeiros promoviam a grita da alegria. Era o Chaplin bailando.
Johann Wolfgang von Göethe não resistiu ao vê-lo dançar e chorando disse: “Na plenitude da felicidade, cada dia é uma vida inteira”.
Bertrand Russell um Lord inglês, trouxe à festa elegância e um ceticismo brando.
Paradoxalmente, e tocando sua melodia Gilles Lipovestsky queria que os víveres servidos à mesa fossem consumidos às pressas.

Eu mesmo arrisquei avisar aos convivas que certa garoa fina banhava os girassóis.
A eternidade se fez tempo e no tempo, instantes, ali onde a alma eclode ao espelho.
Ontem! Tudo isso foi ontem. Restaram apenas cinzas do folguedo de ontem.
Hoje me encontro à luz das cavernas.
Quando as trevas são a única luz que te rodeia,
Você tem que valer-se da luz que traz em si mesmo ou apenas sentir pulsar o coração na penumbra.  
Ilumino-me com a esperança. Ilumino-me com a luz de quem aprendeu a ver no escuro: a fé.

Como fumaça, meus heróis dissiparam-se e hoje me sinto só.
Apenas um ficou. O Nazareno. Mesmo tendo acabado as brasas da festa de ontem Ele ficou.
Daqui do meu lugar o meu nome é quietude.
É assim, quando todos se vão o Galileu fica.
Ele fica porque é o único que sem esgar o rosto sabe amar-me como sou.
Eudaimonia, felicidade, porque és tão volátil?
Perco-te à medida que te encontro. És fugaz e sombria, porém necessária.

Ontem foi um dia inesquecível!

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Apenas Um Som


Tem hora que eu penso que eu sou uma música... 
Um som, apenas um som.
Sinto-me às vezes, um acorde posto na melodia da vida como um toque de elegância.
Outras vezes sinto que sou uma nota dissonante... Destoando tudo.
Uma orquestra em mim se faz ouvir nas primaveras,
Mas nos invernos sou piano empoeirado atrás de cortinas velhas em janelas de outonos.
A canção em mim não encanta apenas a mim, mas mais a mim.
Os verdes tons da valsa do tempo vivem em mim como lembranças.
É em Sol Maior que sigo cantando pela vida.
As cordas que fendem o silêncio se tornam abismos sonoros.
É em Ré Menor que a poesia me ocorre cristalina.
Minha alma é declamada, escrita em partituras de folhas lilás como o vento.
O amor em mim é sinfonia de dobrados acordes postos para serem solfejados.
Acho que sou uma música mesmo. Que outra coisa pode definir alguém como eu?
Um saltinbanco?
Uma pedra esculpida?
Não! De jeito nenhum! 
Uma semínima...
Breve ou semibreve?
O Que sou?
É isso ai, eu sou apenas uma melodia para amar quando ouvida. Mais nada.
Sou apenas um som; não um mero som,
Uma voz,
Um eco vindo das montanhas.
Ecos de uma alma que grita na chuva.
Eco ouvido no deserto.
Sim, um som que rompe o silêncio da saudade.
  

Garoa


Cai a chuva e lá fora, as flores sorvem as lágrimas.
O vento passa rasteiro eriçando a grama verde.
O céu ainda em tom de cinza derrama torrentes.

O menino adejando brinca sorridente.
O corpo de adulto esconde a alma de quem quer soltar balões,
Soltar pipas, jogar bolinhas de gude e ser feliz.

A felicidade verdadeira é aquela que se dá na simplicidade das coisas.
Há alegria mais doce que correr na chuva? Garoa...
A barba branca na face envelhecida não sepultou em mim a ternura.

Cai a chuva e aqui dentro as flores que não sorvem as lágrimas gemem.
As flores caseiras querem a chuva que escorre os céus,
Céus que anelam os meninos que correm ao léu e banham-nos com amor.

domingo, 16 de janeiro de 2011

À Margem Do Rio



Sinto-me à margem de um rio caudaloso.
Daqui, pouco se vê la fora da vida que aflora do outro lado a flora.
O meu olhar sobranceiro alcança os maracás e as macegas.
Minha alma apega-se a tudo que sabe finitude.

A beleza, conquanto necessária, não resiste à efemeridade da vida.
A morte mata a tudo o que vê. Nega a vida que se afirma como vontade.
Schopenhauer cantou essa melodia: “Tu cessas de ser alguma coisa que terias feito melhor nunca ter sido”.
Um doce sonho que mergulha na tumba da inexistência.

Mera quimera é essa arrogância da morte.
Sua sorte está contada, a ressurreição há de vir.
O fato é que Arthur tinha razão quando cantava
“Um novo dia atrai novas margens”. Tudo floresce outra vez.

Sinto-me à margem de um rio sinuoso.
Daqui, eu tenho o céu como plano de fundo.
Thomas lamentou que “Aquele que não tem túmulo tem o céu por mortalha”.
Nasce o homem, põe-se Sol. Renasce o Sol e a vida gira numa gota.

Minha alma que esmera o fio de lã numa navalha,
Possui mundos diminutos na Via Láctea do tempo.
Se vivo, morro! Se morro, reencontro a vida escrevinhada nas linhas da eternidade.
A eternidade meu senhor, cabe aqui na minha mão, como um botão que se soltou do colarinho.

Sinto-me à margem de um rio ditoso.
É o que More solfejou: “o caminho para o céu é o mesmo onde quer que se esteja”.
Um caminho oblíquo se faz paralelo ao rio e meu ser desejante o atravessa.
Para onde levará esse rio? Eu não sonho deixar as suas margens?     




UTOPIA


Os dias passam sorrateiros como passa o sangue pelas veias.
Os rios em mim deságuam uma cachoeira de silêncio.
A espera dói como dói a tristeza.
Habito a utopia do amor, portador do tempo que sangra calado.

Minha busca finda quando finda a luz do dia,
Quando os homens regressam para casa e as feras saem dos covis.
Sou da noite a espinha dorsal, equilibro as estrelas.
Fruto peco caído na estrada em que pés mexeriqueiros alinhavam sonhos.

Absorto, perco o olhar nas coisas que se repetem.
Onde andará a justiça? A clava forte dos que trilham o amor?
Sabe Deus! É melhor seguir em frente que a chuva é vinda.
Não posso esquecer-me de levar as amoras e as romãs; haverá fruto melhor?

De onde estou ouço cantar o grilo,
Enquanto o vento, sereno refresca o corpo.
A alma queima sem saber ao certo o que virá.
Assim, a poesia é terapia para o espírito que transcende o agora.

Um mórbido silêncio como flecha atravessa a noite.
Distraio-me com as recordações dos dias mais doces.
Se a mente como ave não possui ramos no futuro para pousar,
Assenta-se e se sustenta em galhos do passado, porque o presente é vórtice.

Acho que sentindo a mesma angústia Pessoa descreve-se em Tabacaria:
“(...) Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou? Ser o que penso?
Mas penso tanta coisa! E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos! (...)”.

Estou cercado por livros velhos e novos.
Muitas palavras reféns de propósitos diversos.
Eu lê-las-ia todas, não fossem o tédio e a erupção vernácula que eclodem em mim.
Para que tantas palavras, se a que preciso não vem?

Durmam minhas pequenas que amanhã a alegria pedirá carona.
Sonhem com os mundos, desbravem a alma na conquista da ternura.
Desfrutem do pão que meu corpo já cansado nunca pode comer em paz.
Sejam eternas em mim, esmiúcem os caminhos que dão para a felicidade.

Sejam firmes como pedras lavradas,
Sejam tenras como as lãs,
Tenham sempre às mãos um ramalhete de esperança,
E no peito, um coração que despeja poemas de amor em latas de desejos.


Tragados Pela Morte.


Quando criança eu imaginava que fumar era algo impressionante.
Com o tempo, fui descobrindo que sim, era de verdade.
Eu via as pessoas esbaforidas, baforando a fumaça pelas narinas.
Verdadeiras neblinas cobriam suas vidas e enchiam seus olhos.
Aromatizavam o mundo com seu cheiro asqueroso.

Eu fico impressionado em ver como as pessoas ignoram abismos.
Elas escondem seus corpos aflitos e tensos na fumaça.
Dissipam as horas ingerindo mais de 490 letais produtos químicos.
Eu compreendo que a ansiedade da alma escraviza o corpo às futilidades.
Quem fuma um cigarro, fuma-se, estraga-se.
Consome-se paulatinamente, enquanto enche o peito de fumaça.

Com o passar do tempo o nervosismo do corpo assimila o vazio.
A alma fálica, como tal que é, deseja o seio materno, mas este não vem.
O pulmão saudoso por ar puro sorve a nicotina e torna-se absinto.
O câncer, tragando tudo, traga a vida.
A intoxicação da garganta draga a volúpia.
E o homem decantado, esgota o pote.

A perda da fala, mera distração.
Configura-se como resultado de uma nefasta relação com o tabaco.
As pessoas fumam porque se sabem vício.
No carro, na rua,
Nos restaurantes, nos bares,
Na sacada.

Que sacada! Fumam ainda no trem,
No ônibus e vivem por ai, absortas à procura de um ninho.
São aves presas num alçapão da ansiedade.
As indústrias tabagistas são verdadeiras máquinas de guerra.
Insensatez em forma e estilo de propaganda enganosa.
Pintam, colorem, disfarçam o demônio com promessa de liberdade.
E em silêncio matam os seres humanos precipitando-os na vala.

Alguns fumam por prazer, é o que dizem.
Outros por necessidade, outros por patologia.
E ainda há os que se sabem dominados, sem mais nada poderem fazer.
O cigarro paralisa o ser humano com o tempo.
Do modo que a maria-fumaça que chega ao fim da estação, assim chega o tabagista ao fim.

Mas como disse Fernando Pessoa ás pessoas em sua Tabacaria:
“saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos,
Sigo o fumo como uma rota própria, e gozo, num momento sensitivo e competente, a libertação de todas as especulações e a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de se estar mal disposto (...)
E continuo fumando enquanto o Destino mo conceder,
Continuarei fumando (...)”.   

Doce ilusão é a propaganda do cigarro por onde se dá.
Quer na poesia, quer na prosa ou na TV, distorção:
Desportistas correndo, ledo engano.
Homens bonitos em cavalos selvagens.
E o anúncio de charme, auto-afirmação, prazer e liberdade.
Além das doenças para o corpo a cela da nicotina aprisiona a alma.

Conheço muitos fumantes que não se sabem livres.
Sobe a fumaça, enquanto vive a angústia.
Sorvem a angústia os que acendem a morte.
Abrem seus túmulos sem arrefecer.
O mais instigante dos fumantes é a sua necessidade de fazer o outro fumar com ele.

Fumar só parece ser uma atividade deprimente.
Tornam-se fumantes passivos os que se avizinham das chaminés ambulantes.
Compulsoriamente são mergulhados no fumegar constante dos compulsivos.
Na roça fumava-se cigarro de palha,
Na cidade usam os cubanos,
Charutos roliços perfumados.

Nas lendas usam cachimbos, coisas de sacis e cucas.
Nas índias preferem os narguilés.
Tornam-se fumaça os que a produzem.
Há os que querem fumar o mundo.
Não bastasse fumarem suas próprias vidas, ainda fumam suas casas, dinheiro e tempo.

Com o tempo passaram a fumar a fumaça do demônio.
Antes era o fumo de corda, agora até pedra fumam e amarram uma corda ao pescoço.
Não é o homem que consome o cigarro, mas o cigarro ao homem.
Consumindo-se, ambos desaparecem na fumaça.
Quem fuma consome-se a si mesmo e aos que o amam, na morte.

Entre os dedos, o homem porta a morte na ponta de um cigarro.
Dizem que fumar é prejudicial à saúde,
Mas quem se importa?
Se os de qualidade nada valem imagine os clandestinos.

Como disse Drummond em Resíduo,
“De tudo ficou um pouco,
Do meu medo. Do teu asco. (...)
De tudo ficou um pouco,
Da ponte bombardeada,
De duas folhas na grama,
Do maço – vazio – de cigarros, ficou um pouco (...)”.

Hoje existem os currais dos fumantes.
Não fumantes entram se quiserem ficar um pouco.
Nos aviões,
Nos navios e nas repartições públicas.
Estou farto disto,
O fato é que fumam mesmo, enquanto no fundo, estamos todos sendo fumados.

O capitalismo bafora nossas almas nas ruas e no céu das cidades.
Somos expelidos pelos poros, pelos tubos e artérias de uma sociedade que fumega sem alma.
Mundo de Dante, onde o bicho não morre nem a fumaça ou o fogo consomem.  

Traças e Tranças

  
Eu odeio as traças, pois devoram a tudo que é literatura.
Vi alguns dos meus prediletos traçados no último banquete.
Senti uma dor fulminante. Eram livros ainda não lidos, clássicos.
Sofri, resmunguei, padeci e me dei à reflexão.

Pensando bem, eu não as odeio tanto assim,
Visto que, de certo modo, passam certa sabedoria.
Refiro-me a um tipo de sabedoria que os livros não podem oferecer.
As traças comem os livros. Devora-os sem lê-los.

Ler livros não é sua especialidade. Exterminá-los sim.
As prateleiras enganam, enquanto as coisas envelhecem.
Ai bem ao lado, um misterioso ser finito e minúsculo vence a anos de labor.
Do que valem os livros não lidos?

Para que servem os livros que enfeitam estantes?
A vida exige uma dinâmica, pois a vida é dinâmica.
Todas as coisas estão em processo dinâmico de morte.
Não existe a securitati perpetuae para as coisas daqui.

Os livros morrem como morrem os homens e as traças a isto denunciam.
Assim, eu vi o saber corroído. Assisti a traças deglutindo os imortais.
Vi grandes autores devorados por bichos e ignorados por homens.  
As traças traçam a tudo que trançam seus desejos ao tempo em sua fuga mortis.

Acho que elas têm razão, os livros precisam ser devorados.
Como devoradas precisam ser as horas e a arrogância dos homens.
O cheiro de morte que vem dos livros alimenta as traças que anunciam a natureza visceral das coisas.
E a decomposição destes, me avisa que preciso viver e escrever minha história.

Nada é para sempre.
Tudo o que existe será devorado. O tempo é como a traça, a tudo devora.
Há traças para tudo o que se chama volúpia e existência debaixo do céu.
Tudo no mundo é transitório, temporal e frágil, como frágeis são as traças, os homens, os livros e as flores.

Trocadilho



Ter-te comigo é como ter a mim tentado ter-me contigo.
Te ti contigo, sibila o poeta altaneiro.
Tece o linho da mortalha,
Coze o véu da noiva numa cachoeira de águas claras.
Me mi comigo, na espera de uma avelã madura.
Torce a cauda enquanto terce a malha fina da navalha na poesia.
Se si consigo, se consigo esvaziar a fonte.
Os nós já foram dados, o que fazer? Desfazer.
Se só sossego sussurrando salsas e sorrisos,
Ter-te comigo me parece ser-te sorte mais feliz.

Cadafalso Para Cada Falso!


A fé é o cadafalso da razão.
Fere a jactância do orgulho.
A porta entreaberta espreita os vícios do espírito.
Soberanos, azorragues ditam a próxima oração.

O devoto se encurva, o bispo alveja-o na Sistina.
O capitalismo habita os lugares outrora sagrados.
Cão sagrado, pão partido, corpos desnutridos ceiam no patíbulo.
E nos altares a prosperidade é moeda de troca.

Pergunto-me, o que fazem os deuses com as dracmas?   
Para que lhes servem as moedas? De que lhe serve o ouro?
Temam a Deus e atentem para a usura dos fiéis soldados de Mamom.
Eles só falam em dinheiro e prometem latifúndios na terra da promessa.

“Não ajunteis tesouro na terra”, disse o Cristo.
Mas esta mensagem é para os leigos apenas, dizem.
O clero finge estar autorizado a possuir aqui o que já foi desautorizado lá.
Raça de víboras; devora a carne dos pobres e fingem devoção.

A justiça é o cadafalso dos avaros.
Genuíno é o evangelho. Sofre o dano.
Tudo espera; tudo suporta e diz a verdade.
Reconstrói, perdoa e santifica.

Não há nada errado em abençoar, repartir ou dar.
Se o que dou visa os pobres, as viúvas e os órfãos.
Se o que dou é um meio de locupletar a gana Judas avarentos,
Logo, corroboro para que o mal finque raízes.

Hoje já não dá mais para fazer o bem sem olhar onde e à quem.
Ofertar não pode ser um ato cego de cegos que engordam caolhos.
A oferta é um ato de amor, consciente e com desígnios comunitários.
O que passar disso é alimentar utopias de aventureiros de terno e gravatas.

O que levava a bolsa era um dos doze.
O que roubava a bolsa dos doze era um.
Eram doze, mas um era ladrão.
Eram doze, mas um, o ladrão, não suportava ungüentos vertidos perfumando o Cristo.
   
“Desperdício”, dizia ele, de olho na bolsa.
Por que não se deu aos pobres? Um fingidor.
Ladrão! Os pobres estarão sempre entre vós.
Seu evangelho era o do lucro fácil.

O cadafalso da mentira é a verdade.
Os fiéis estão mais pobres e os anunciadores de prosperidade mais ricos.
Por onde anda o evangelho da graça? Está em desuso.
Não serve, é de graça demais para quem quer tudo pago.

Venda o seu carro, fique a pé.
Doe a sua casa, entregue tudo.
Latifúndio é coisa do demo.
E no fundo, refiro-me aos bastidores, os porcos chafurdam.

O evangelho foi posto a venda no varejo e no atacado, barateado.
Comprem o óleo, a fogueira, a arca e o ramalhete.
Passe pela porta; banhe-se no sal grosso; seja tolo.
E por ai a Bíblia esconde dólares de sacerdotes em fuga.

Quem dá mais? Pergunta o bandido.
“E farão de vós negócio”, disse Pedro o Apóstolo.
Quem dá mais? Indagam os cambistas no interior dos templos.
Balaão é pastor na igreja dos Nicolaítas.

O cadafalso do oprimido é a ignorância.
O evangelho é luz, mas não precisa comprar lanternas na igreja.
É cruz, mas não precisa pagar por pedaços de madeira de Israel.
O evangelho é espírito e vida e não um mercado livre que alicia o comércio.

Thomas More tinha razão, “pregadores hábeis e sinuosos (...)
Torceram e vergaram o Evangelho, como se fora uma régua de chumbo,
E moldaram-no aos costumes dos homens (...)
Desse modo, dão “(...) segurança e estabilidade ao próprio mal”.