segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Poemas flutuantes!

 
A tábua posta sobre as águas, desliza em silêncio no leito rio.
Peça de um velho barco que sem rumo ruma a ermo à deriva. 
Assim, meus versos que sequer sabem nadar, flutuam silentes por ai.
Para onde iria a minha alma asilar-se se as amoras ainda nem nasceram?
O mundo me deixa nauseabundo quando no fundo, abundo em serena tristeza.
O fundo da minha alma é abismo em cujas escarpas nascem morangos doce.

Viandar é tudo que meu espírito aventureiro anela algures. 
Absorto e melómano, vago por ai a esmo entre becos, ruas e abismos.
A tábua partiu e, partindo, restaram-me o rio, o silêncio e um poema.
Feito Atlas carrego em meus ombros, resistente, o meu próprio mundo e destino.
Os destinos são tecidos por mãos que transportam sonhos e escrevem versos de amor.

Em silêncio o rio segue transportando a poesia, restos mortais de barcos de outrora. Para onde?
Para onde irão o silêncio, o rio, e poemas escritos em tábuas de velhos barcos de marinheiros que amaram a lua?
Não sei dizer. O que sei é que amanhã é primeiro de março e eu espero as águas de verão.
Espero as chuvas que enchem o rio, transportam a tábua e molham o silêncio e e levam poemas de amor,
Enquanto eu, com olhar em riste, volto a face para um ponto qualquer no espaço em busca da minha própria razão de ser.   

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Sinos!



O sino da capela toca,
Ouço seu som distante e belo.
Já não há mais razões para os sinos,
Se os altares estão vazios de sentido.
Se nas capelas nem os pardais sentem prazer.
As andorinhas rumaram para as ruas,
E entre as árvores se aninham de teologias que retinem.
De discursos vazios vivem os templos cheios.
Dói na retina ver as cruzes, os balaustres e as velas inúteis.
O andor se funde ao funeral e o Cristo vivo, 
Levado como morto, morre de vergonha, 
Cora entre os vivos-mortos que em andrajos seguem por ai. 
Zumbis urbanos transportando a fé na procissão e nos cultos.
O Cristo meu senhor, sepultam-no todos os dias, 
Mas ele insiste em ressuscitar. Só muito amor mesmo!
Os sinos tocam e pedem socorro.
As portas dos templos permanecem fechadas mesmo estando abertas.
O que houve com os homens?
Por onde anda o santo? O pároco? 
O pastor das almas? E os fiéis? Entre abismos...
E Deus? Seria ele a badalar o sino tardes e manhãs?
Para quais consciências?
Que espíritos ainda o escutam?
Teologias há em dúzias, vende-se a três por dois.
O mercado é logo ali entre a cruz e o altar.
A feira-livre mais acolá. Quem dá mais, quem dá mais?
Deus é mais! 
Seria esse barulho o insucesso de Deus com o sino?
Para que os shoppings lá fora se os do templo vendem mais barato a graça?
De graça? Nada, nada é de graça! Doce desgraça. 
Os sinos ainda tocam no alto das igrejinhas.
Mas para quem?

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Memória!


Não confio na memória,
Migra para longe quando hibernam seus encantos.
Como posso esquecer a canção que um dia me fez sorrir?
Como posso olvidar a flor cuja folha eu ainda guardo em um livro?
A memória é assim, furta, baila e camuflando se esconde,
Quando mais da sua luz minha lembrança anela.
Não confio na memória,
Lapso de mim que espanta as aves.
Memória curta é punhal cravado no véu do afeto.
Gosto das memórias quando vicejam rosa feito doce saudade.
Mas insisto, teimo e não confio na memória.
A memória é como prateleira de vidro,
Suporta coisas leves.
Quando o mundo pesa,
Ela simplesmente,
Esquece!
Há coisas que foram feitas para esquecer,
Outras para lembrar eternamente.
Mas como pude esquecer o instante eterno em mim.
Minha memória é rã, salta, por isso esqueço. 
Esquecendo eu firo.
Ferindo eu sofro.
Sofrendo eu agonizo.
Na agonia eu calo.
Calado eu choro.
Chorando eu pergunto, por que?
A memória é póstuma,   
Sem dizer palavra renasce e a vida eclode.
Se acarinhada, ressuscita.
Ressuscitando, reconcilia-se com o mundo.
O mundo, passa a ser imagens postas no útero da memória.
E assim, em silêncio espero outro inverno.

Calma!


O mar está ali, calmo com candura e beleza.
Diante de mim, travessias infindas,
Atrás de mim, estradas mortas, onde meu velho coração trilhou.
Sigo como quem segue no lombo de bois por veredas íngremes.

Os bois são assim, calmos como o mar quando visto de longe.
Por que minha alma não se acalma e pega o trem?
O trem que vindo das cabeceiras da serra cerra mundos meus?
Não há ansiedade nos trens sobre calmos trilhos.

Como os bois e o mar, os trens foram feitos para transportar
Sonhos, saudades e o sereno da noite.
Eu preciso aprender que o mar espera o amor que vem de longe.
Que o trem espera o fim da estação, as quatro.
Os bois esperam a poeira da estrada e a canção de boiadeiros em invernos frios.

Eu apenas espero a brisa leve que me leve ao horizonte.
Quero conhecer o mundo.
Quero adentrar as casas e às vidas de gente de outros mundos.
Quero deixar meu coração aberto ao nascer do Sol em calmas manhãs de  espessa neblina e silêncio.   

Tramelas!




A tramela da porta está aberta,
Ah! Essas tramelas abrem e fecham os mundos.
O telhado molhado da última chuva,
Respinga no batente à luz de vaga-lumes ofuscantes.

O cheiro de mato queimado ainda perfuma o caminho.
A cana cortada na carroça roça o chão rumo ao terreiro.
Tudo em mim é neblina e em meu céu nublado não possui estrelas.
A terra úmida faz florir as margaridas; o capim gordura cresce.

O balanço na árvore feito de pneu ainda gira.
Sombras do passado ainda riscam o fósforo da saudade.
Vejo-me menino, correndo, pulando, marejando os pés nas águas do amor.
As horas passam e eu aqui, viajo solitário ao quebranto de outrora.

Nesses quintais eu já fui índio, guerreiro, pivete e bandido.
Pivete é muitas coisas, porque sonha sendo tudo, não sendo nada.
Eu fui pivete, Super-homem, Homem-aranha e até o Zorro.
Minhas máscaras transportei no tempo. cresci, troquei-as por outras. 
Já fui rei, já fui pirata, escravo e jardineiro.

Erasmo tinha razão - Que é, afinal, a vida humana? Uma comédia.
Cada qual aparece diferente de si mesmo;
Cada qual representa o seu papel sempre mascarado, (...)
O mesmo ator aparece sob várias figuras,
E o que estava sentado no trono,

Soberbamente vestido, surge, em seguida, disfarçado de escravo, coberto por miseráveis andrajos.
Para dizer a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência, mas o fato é que esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra forma (...)

Cada um possui a sua própria máscara.
O meu ser em si, de si se sabe seguro, insustentável leveza.
Fui saci e saciei-me sendo saudade sorvida junto à fonte.
Hoje sou Ícaro e alado, sigo pelo mundo a fora.
As tramelas ainda continuam abertas.  

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Mãe e manhãs!


A minha mãe é manhã.
Das manhãs de outonos, eternas saudades.
Venceu o câncer,
O diabetes,
O derrame,
A Isquemia,
A Pressão alta,
O coma,
Debelou as horas e a espera. 
Riu-se da paralisia total dos membros,
Amou o mundo,
A si mesma,
Criou sozinha a cinco filhos,
Creu em Deus sem desistir.
Rompeu madrugadas,
Venceu o tempo,
O medo,
A solidão,
A separação.
Venceu o dia,
A noite,
A rua,
Nadou no rio de lágrimas sem se afogar.
Superou a fome.
Venceu o ontem,
O hoje e o amanhã.
Quem mais precisa de heróis?
A minha mãe é para mim e meus irmãos, feito Cristo, 
Seio que amamenta vencendo a cruz na morte.
A minha mãe é manhã das manhãs floridas de sóis brandos.
A minha mãe é manhã. 

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Atrás Dos Muros, Há Mundos!


Como um navio ancorado no cais, minhas cordas firmam o mar.
O que pode me abalar se, qual montanha me finco ao chão?
Sou jangada feita ao mar, de amor em costas onde a areia espera.
À deriva me deriva os sonhos feito brisa leve quando toca a face.

Deveria eu que sou poeta ser corais de esperanças mil?
Sinto-me caracol preso à minha concha, casa onde moro.
Transporto em mim o meu abrigo insólito e na areia dilato a vida.
Sou portador da paz em versos quebrados como ouricuris maduros.

Minha espera é moenda que desfaz meu canto feito amêndoas.
Sorvo o vento que, faceiro, passa pela praça onde meninos brincam.
O coreto, ponto de alegria é contraponto em meu amanhecer nodal.
Minha alma quer como diz Adélia em sua Moça na Cama “(...) adiar meus crepúsculos” – pois, (...) “os muros tem seus atrás”.

Atrás de mim há caminhos...
Quando me sinto sozinho,
Vejo-me atrás de destinos como de espelhos,
Atrás de tudo há sempre outro atrás e de mim só resta a lembrança que ficou para trás.   
  

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Sol Que Parte Em Silêncio


O sol está indo embora,
É já tarde e alma sente saudade.
Uma nostalgia leve leva cativa a minha calma,
Enquanto os meus olhos avistam as montanhas ao longe entre nuvens.

Como explicar a saudade se ela simplesmente chega de assalto?
No peito uma agonia faz o fim de tarde tornar-se pueril.
A luz do sol doura a pele que deseja um lugar que não sabe dizer.
O corpo geme a dor de outras vivências postas sob a tumba do tempo.

A vida escorre suavemente lá fora,
As flores estão ali na gratuidade do mundo sem angústia.
Flores ansiosas não existem, elas sorriem sempre.
Temo as rosas quando postas em vasos, nos jardins elas são felizes.

As aves se despedem e o véu da noite sorrateira mente.
Mente para os olhos que desejam a aurora bela.
A noite guarda as estrelas e estas cintilam ali perto das mãos.
Eu gosto quando as estelas estão ai perto do coração.

Que venha a noite,
Que venha a escuridão.
Estou certo que o sol nascerá amanhã.
Que as estrelas se façam ouvir onde o amor seja contemplação. 

E o Sol?
Parte em silêncio e o vejo despedir-se entre as frestas.
Estou só, 
Mas sou Sol que de tão só recusa-se partir.
Boa noite! 

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A Brasilia Azul


Nos idos de 1989 floresceu no Brasil a banda de rock Mamonas Assassinas fazendo com que crianças, adolescentes e jovens experimentassem uma verdadeira explosão de ritmos que misturados à alegria e à irreverência deu contornos festivos à nação brasileira.
Quem não ouviu do Oiapoque ao Chuí a canção Brasília Amarela e não deu ao menos atenção ao que brincando diziam sob trompetes tocados a mexicana, os artistas da inesquecível banda? Não obstante, tamanha algazarra e toda a euforia chegaram ao fim na queda de um avião que os transportava para um show em Brasília em 1º de março de 1996. O Brasil chorou e a Brasília Amarela se fez ouvir pela nação inteira como num coro de despedida. A Brasília tornou-se verde-amarela.       
Da minha parte eu senti muito visto que nutria um carinho especial por Dinho, o vocalista principal do grupo, por duas razões muito simples, ele era muito carismático e não negava sua baianidade, depois por sua família parecer muito humilde de coração o que me levou a orar por ele e seus amigos, a fim de que um dia usassem todo aquele talento para a glória de Deus.
Foi no auge da canção Brasília Amarela que eu viajei em uma Brasília azul que marcaria a minha vida. Uma Brasília azul era o que faltava na minha história. Era uma sexta-feira à tarde quando a buzina estridente tocou na minha porta. Uma senhora forte, sexagenária de espírito dócil, cheia de boas intenções, saiu de dentro dela e com certo ar de desespero pediu-me para que a acudisse na urgência de suas inquietações.
Sem que soubesse o destino tive que socorrê-la, caso contrário frustraria seus sentimentos de ovelha que espera prontidão absoluta do pastor. Naquela carruagem a amistosa senhora transportava bolos de puba e milho. Seu banco surrado era baixo, mas tão baixo que dela, pelo lado de fora só se avistava a cabeça.
Esbaforida tomou-me pelo braço e sem que eu pudesse sequer recusar, lançou-me para dentro da peça de museu e ali eu saberia ao pé da letra o que cantava a banda Mamonas Assassinas. Para minha mais profunda angústia, lá dentro da Brasília azul eu descobriria que somente a motorista possuía um acento digno. Ávido por me libertar daquela parafernália e sem poder dizer nada, uma vez que parece que pastor é uma raça de gente que não pode reclamar dos infortúnios causados pelas ovelhas, assentei-me num banco de madeira. Um tamborete na verdade. O cinto de segurança não era para proteger o corpo, mas para que o carona, feito Tarzan ficasse amarrado, pendurado e prestes a se enforcar.
Aquela coisa ambulante jamais causaria um sinistro, ela já era o sinistro em forma de lata velha. O horripilante desta história é que a Dona Ayrton, corria a dar de pau e eu orando em espírito, fechei os olhos e chamava por Deus. Não tinha quebra-molas que ela não pulasse nem buraco que não caísse. Tenho a impressão que Deus se ria naquele percurso das minhas 500 milhas no circuito de Indianápolis. Vendo-a de cima, pois eu estava num tripé de madeira parecendo um perneta, malmente eu via a rua. Minha cabeça batia no teto e a ferrugem caía em mim.       
Suado, espavorido, cercado por bolos de toda sorte e atado ao cinto de segurança, aquela viajem parecia não ter fim, embora nem eu mesmo soubesse o fim da viagem. Depois de muito andar chegamos a uma casa grande, numa chácara onde depois do alívio da descida da minha corda-bamba eu passei saber, as suas reais intenções.
- Pastor! Avemaria como eu estou alegre! O senhor pode orar pelo meu mais novo investimento? – Indagou-me apontando para um velho forno a lenha onde num futuro não muito distante faria suas mais saborosas pizzas e de onde surgiram suas momentâneas invectivas como pizzaiola – tomara que este seja o feminino de pizzaiolo visto que pizeira pode ser o de pizeiro; seja como for era isso que ela pretendia ser.
Eu confesso que estava tão extenuado que mesmo orando pelo forno de lenha, lenhado eu pensava no retorno e pedia a Deus que me acudisse na minha via crucis. O retorno era a minha maior inquietação. Depois de abençoar o forno, de orar por mim mesmo, por ela e pela Brasília azul, segui para o lugar onde tudo começou.
      Ai eu aprendi que ser pastor é um trabalho de risco, mas também que em terra de cego quem tem um olho, é rei. 

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Perdas e Ganhos



A vida nos apresenta muitas surpresas. Algumas agradáveis, outras não. Porém, há aquelas que são as duas coisas em si mesmas. O fato é que na verdade, parece haver uma dança essencial e uma sincronia entre estas coisas, que nos levam a pensar que nunca vamos nos acostumar à ambivalência delas e por esta razão, estamos sempre vivendo e resolvendo conflitos.
Faz pouco tempo um visitante siamês passou a andar em volta da casa onde moro. Tudo ficaria bem, não fosse o barulho contínuo que fazia. Era um miado triste, pidão e revelador da fome, da sede, do sono e das inquietações de uma felina. As almas da minha casa se dividiram. As meninas logo se apaixonaram, mas a minha esposa queria vê-la distante e à distância.
Eu fiquei em cima do muro esperando o fim daquela relação de amor e ódio. A gatinha era realmente linda, mas possuía um espírito invasor, autoritário, ameaçador, oportunista e gatuno. Essa gata reunia em si tudo que eu mais detestava. Depois de muitos protestos a minha paciência foi se esgotando e meu instinto de caçador começara a dar sinais de vida. Eu tramava um jeito subversivo de dar fim àquela história. Afinal de contas, aquilo tudo já estava me tirando o sossego.
Tal foi a minha perplexidade quando eu vi minhas tramas serem eliminadas pela candura de uma família de felinos. Eles eram três, a mãe, o preto e o clarinho. Ao avistar-me, correram para trás das pedras onde se escondiam; sua morada provisória. A convivência com os novos moradores trouxe novo fôlego para a dona da casa e as pequenas se maravilharam. Ao ver tanta azafama em torno dos mesmos, pensei que a felicidade duraria por muito tempo. Ledo engano. O leite posto no prato, o peixe jogado perto da ninhada, as visitas constantes à cozinha foram dosadas com um tom de impaciência. Daí sobreveio o pior. Se as minhas estratégias de eliminação dos gatos ruíram, as da dona da casa estavam operando em profundo silêncio.
O fato é que ninguém esperava tal derrota. Eu mesmo já estava afeiçoado aos bichanos e mesmo estes a nós. Já se havia erguido a bandeira da paz, mas uma conspiração silenciosa se armava como tempestade no céu, chuva grossa que nos apanharia a todos.
Sr. Tota, um amigo dos gatos e da família veio do outro lado da cidade com seu amigo pegador de gatos inocentes, designado a levar os gatos para casa. Eles fizeram um salseiro medonho para pregá-los. De longe eu notei a bravura dos gatos, os quais, tentando sem sucesso fugir da refrega, esguichando e dando unhadas, não puderam se livrar daquele cerca-lourenço horrendo que culminou na prisão dos indefesos numa mochila escolar, apetrecho usado para transportá-los. Os homens venceram os bichos. Os racionais os irracionais. E todos perderam.
A gata perdeu, visto que fugiu para longe abandonando seus filhotes. As pequerruchas perderam porque viram seus dois primeiros gatinhos preferidos, com os quais já elaboravam sonhos encantados partirem a tiracolo. A dona da casa perdeu, porque além de ela mesma já ter se afeiçoado aos gatinhos, já podia ver as lágrimas das meninas vertendo na face e suas almas gemendo, e sentir a dor causada na gata que agora por seu instinto materno, chorava inconsolável a partida dos filhotes. Sr. Tota e seu amigo perderam porque não lograram êxito deixando fugir a mãe dos gatinhos e, ambos arranhados, levavam suas dores.
Eu de minha parte perdi. Perdi a paciência, por ver tudo isso passar diante dos meus olhos e nada poder fazer, caso eu me movesse para dar fim àquela perdição, perdas maiores poderiam ocorrer. Então, parti para a administração do problema.
Consolei as pequenas dizendo-lhes que Sr. Tota gente boa como é trataria melhor dos felinos que nós e elas iam poder ver o branco e o preto toda semana. Expliquei-lhes que caso ficassem em casa, assim que crescessem a mãe os levaria para não mais voltar. Eu tinha que arrumar uma saída para a perda da mãe, pois as crianças sabem a dor que causam as ausências, sobretudo materna. Então eu disse-lhes – “a mamãe gato vai ficar com o gato preto cuidando dela, o pai do preto e eu mesmo vi a ambos dialogando na linguagem dos gatos sobre o destino dos filhotes. Vai ficar tudo bem”. Eu disse isso para consolar as minhas filhas e secar suas lágrimas.
Quando eu pensei que a coisa tava ficando boa, nos sobrevieram mais perdas. Sr. Tota numa das visitas para ver os pobres dos gatinhos nos disse que os mesmos tinham desaparecido do quintal de sua casa. Nós mesmos testemunhamos a desdita, visto que passamos uma tarde inteira em sua casa e nenhum miado se nos acudiu. O mundo desabou. Agora, todos nós perdemos tudo.
Restava a única saída para destravar essa sucessão de perdas. Trazer para a casa de Sr. Tota a mamãe gato a fim de quem sabe por seu instinto encontrá-los. Entretanto, quem iria pegá-la e como para tal tarefa? Os últimos aventureiros gemem até hoje seus arranhões.
A novena começou e eu fui sorteado para dar um jeito.
- Sonífero! Esse é o jeito – pensei.
Sai à procura do melhor, o mais barato e mais eficiente. Contudo, a mamãe gato nos surpreenderia a todos. Suas resistências acabaram. Parecia que imaginava o que estávamos tentando fazer com a bagunça que trouxemos de súbito à sua vida. Condicionada e regida pelo estômago, resistiu ao leite eivado de sonífero, não deu tanta atenção ao peixe usado como isca, mas como numa resignação profunda e resoluta se deixou levar caminhando direto para a mala que lhe serviria de transporte. Era noite e a festa se deu na casa onde todos nós morávamos, exceto Sr. Tota e seu amigo.
Para alegria geral a gata reencontrou os seus filhotes, os quais driblando a todos se esconderam por trás de algumas quinquilharias nos fundos da casa.
Hoje as meninas podem brincar com elas na casa do Sr. Tota que de tão feliz preparou um banquete para os felinos visto que sonhava tê-los. A dona da casa ficou feliz pelas meninas que contentes, podem revê-los para brincar semanalmente, por Sr. Tota que agora realizou seu sonho e pelos gatinhos que além de não lhe abusarem mais ficaram amparados pela mamãe gato, de onde ela pudesse acompanhar sempre e eu feliz por este final maravilhoso. O fato é que nem tudo que começa mal tem que terminar mal. Histórias boas possuem um final feliz. E por aqui meu senhor, quem não tem cão caça com gatos.  

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Meus Amigos Ciganos Portugueses


        Eu já passei por muitas coisas boas nesta vida, mas nada se compara ao que desfrutei e vivi entre os ciganos portugueses nas poucas vezes que estive entre eles. Minha alma ligou-se à terra portuguesa de tal modo que, volta e meia sonho nela chegando. Há sempre uma esperança de lá estar, cruzando suas ruas como o sangue que percorre as artérias vitalizando o corpo.
Quinze anos após pisar pela primeira vez naquele lugar encantador, ainda fecho os olhos para vê-lo, fascinado em minha imaginação. Não é assim que a gente faz quando ama alguma coisa ou lugar? Ovar, Espinho, Santa Maria Da Feira, Porto, Gaia, Felgueiras e a belíssima Vila do Conde. Tudo que a alma de um poeta precisa para ser feliz está ali. O amanhecer de manhãs frias com réstea de Sol na janela ao som da voz da vendedora de peixes dizendo – “carapaus fresquinhos dos nossos mares”.
Não sei o que fazer, pois me sinto ligado àquela terra simbiótica, almaticamente e poeticamente. Tudo em Portugal me encanta, da paisagem ao clima, das pessoas aos cheiros dos cafés onde podemos simplesmente sentar, prosear um pouco, enquanto lê-se um jornal do dia para saber o que os brasileiros fizeram na última partida de futebol. Entretanto, das coisas mais belas, foi a comunidade cigana que me marcou profundamente.
Eu era garoto quando os encontrei pela primeira vez em Espinho. Entre muitos amigos ciganos eu conheci os Maia, gente com a qual criei afinidade e pela qual fui acolhido dando-lhes como resposta o meu amor e respeito. Aos meus olhos eles sempre foram fascinantes. Vestidos com suas roupas características, um linguajar peculiar, faces belas de homens e mulheres feitos para a alegria. Eram firmes, amáveis, dóceis, sobretudo sérios quanto à tradição e à fé em Jesus Cristo e como eu, dado que eram entregues aos fartos e apetitosos manjares celebravam a vida à mesa. Na minha frágil inculturação entre eles, aprendi com profundidade o sentido da palavra família, honra e alegria, onde acontece de fato o lema emblemático dos Mosqueteiros – “um por todos e todos por um”. Ainda me lembro de com eles andar, ver nascerem seus filhos, viver seus lutos, estar à mesa com eles, ver seus olhos brilhando nas danças e louvores, com eles cantar e tocar, abraçá-los, presenteá-los e ser por eles presenteado. Tudo isso me trouxe grandes alegrias.
Foi ao lado de um deles que eu, a caminho do Porto, na iminência de comer uma “Feijoada Transmontana”,  prato da culinária cigano-portuguesa degustado à mão. Era um amigo inesquecível que cuidava da minha solitária alma em dias de poucas chuvas. Dentro de uma camioneta, narrou-me uma porção da sua cultura que aqui capitula mais uma pérola preciosa, para meus débeis textos, escritos afim de perfumar o mundo com poemas e versos de amor. 
Ao ser indagado sobre o matrimônio cigano o meu amigo passou-me a dizer:
– “Entre nós ciganos uma das cerimônias mais importantes é o casamento. Nós prezamos pela honra e nossos filhos se casam cedo, pois os seus filhos crescem com a gente. Vivemos e envelhecemos juntos. Quando morre alguém sofremos muito e o nosso luto além de doloroso não pode ser quebrado. Respeitamos nossos mortos. No entanto, é quando nasce alguém em nosso clã e quando nos casamos que a alegria floresce altaneira”.
Diga-me como acontece o vosso ritual de matrimônio – pedi curioso devotando-lhe dobrada atenção, sendo que já havia muito eu esquecera a estrada e a beleza das paisagens ao redor.
“Convidamos os amigos, os anciãos da comunidade e as famílias festejam por quase quinze dias” – disse ele com um brilho no olhar – “os noivos são prometidos um para o outro desde muito cedo, ainda crianças, e os pais nem eles mesmos podem quebrar o acordo. Caso isso venha a acontecer gera-se um mal-estar muito grande entre as famílias. Em alguns casos pode até gerar morte. No dia marcado, a família do noivo dá o lenço branco com bordados a gosto, comprado com muito zelo, visto que será guardado depois do ritual por toda vida”.
– Ritual? Qual ritual meu caro? – questionei querendo entender o que ele falava com tanto esmero, pois não tratava de efemérides.
– “Sim, o ritual é a parte mais importante dessa cerimônia. A anciã convidada, uma das mais velhas da comunidade, seguida de mulheres das duas famílias, leva a noiva para um quarto e de posse do lenço branco dado pela família do noivo, será posto no dedo polegar anciã para quebrar o hímen da rapariga” – disse ele com muito cuidado nas palavras, visto que se tratava de um tabu de alto relevo entre os ciganos. Todavia, como estávamos os dois apenas, se sentiu um pouco mais a vontade para falar-me mesmo que usando como mecanismo de defesa o baixar do tom da voz, cochichando e tartamudeando para não parecer leviano.
– E daí? – Indaguei curioso.
– “E daí que um mistério divino acontece. A "Estrela de Davi" se forma no lenço branco” – disse-me ele.
– Como é? – inquiri atônito.
– “É isso mesmo, a Estrela de Davi. Há um liquido oleoso que só existe nessa parte do corpo da mulher e quando forçado pela anciã na frente das testemunhas, forma no lenço a Estrela de Davi em óleo e sangue e nunca mais se apaga. Essa é nossa aliança. Revela a virgindade da rapariga e abre o ciclo da relação conjugal até ao dia da morte. As anciãs saem do quarto e trazem a noiva e o lenço para a família do noivo e a partir daquela data as famílias se unem ferrenhamente”.
– O que acontece quando morre um jovem casado? – perguntei desejando aprender o máximo.
Ao que me disse ele:
– “Uma tristeza muito grande se nos abate. A família faz o luto, apóia os filhos e ao cônjuge que ficar só. Este não poderá casar novamente, sendo que para as mulheres a regra é mais rígida. Se ela o fizer será banida da família, malvista na comunidade e perderá a guarda dos filhos. Prezamos a indestrutibilidade da família e do casamento”.
Chegamos à casa e aquele homem de barba feita, alinhado e uma calvície despontando mostrava a maturidade daquele guerreiro que se fez menino na alma casa a dentro, devotando total cuidado aos filhos, à esposa e sem esquecer do seu convidado.
Foi assim meu caro leitor que eu andei entre o povo que na Europa está abrindo o coração para o evangelho e geme de amor pelo Senhor Jesus Cristo. Ainda escuto as suas afinadas vozes altissonantes adorando a Deus. É assim, que mato a saudade, vejo suas fotos e ouço suas canções.      
  Vai aqui uma dica, indo a Portugal e tendo sobrevivido ao taxista maluco, não deixe de pedir uma Feijoada Transmontana à cigana da região do Porto.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Peixe Morre Pela Boca!



A última viagem que fiz para a Europa foi de uma preciosidade jamais provada na minha vida. Os ares do velho continente me enchem de contentamento e muita alegria, todavia, como todas as outras vezes que lá estive eu vivi experiências que me marcaram profundamente. No bojo do que passei eu guardei coisas agradáveis e tristes. Encontrava-me em Lisboa, retornando de uma maratona complicada na região do Porto, na cidade de Quixangá, eu e meu companheiro Pedro A. C. Bohr.
Em certas ocasiões de reveses, a vida se transforma em desertos, e nestes, só temos a nossa própria sombra como refrigério contra a incidência do Sol causticante. A suntuosa Lisboa tornou-se momentaneamente para mim, naquele dia galopante de estio emocional, uma alegria para a alma. Como esquecer o que ainda está vivo na memória? A memória alimenta-se do que é lembrado.
Tínhamos duas simples e não menos complicadas opções naquele aeroporto – ou passaríamos doze horas aguardando a hora do nosso vôo partir andando pelo aeroporto, ou rumaríamos para um hotel a fim de passarmos a noite; porém, como fazê-lo se nossos recursos não permitiam nossa livre locomoção? Eu lembrei que havia guardado algum dinheiro em real para o retorno, entretanto, insuficiente para uma hospedagem. O meu amigo já havia semanas estava amparado debaixo do meu guarda-chuva financeiro, restando-lhe apenas poucas moedas. Ambos fomos deixados para trás tendo as cordas cortadas por quem nos prometera amparar. Do fundo do poço, ressurgimos semimortos, feridos, famintos e extremamente exaustos. 
Depois de usarmos o cartão de crédito contabilizamos tudo e a soma restante em dinheiro foi a conta para um pernoite num hotel de primeira qualidade, visto que brindávamos à saída do fundo do poço com requinte de guerreiros que recolhe seus despojos após a guerra. Eu sequer me dei conta de que deveríamos tomar um táxi, ir para o hotel e ainda guardar alguma coisa para jantarmos. Assim, fizemos o que os instintos ordenavam.
Ao entrarmos no táxi notamos que o motorista estava saindo de uma confusão que de pronto acabou por nos envolver. Ao indagar-lhe onde ficava o hotel, o mesmo indignado disse-me ao sabor de seu sotaque lisboeta – “eu não estou aqui para dar-lhe informação alguma. O senhor deve saber para onde está indo” –, aquilo foi o bastante para startar o “velho homem” em mim, refiro-me ao da “idade da pedra”, a “pedra lascada”, o “Neandertal” em mim, sufocado pela passividade crística, ressuscitado por inconveniências religiosas, recém-saído do fundo do poço. Ao que o respondi asperamente – “eu estou pagando-lhe para que o Sr. faça o seu serviço. Não conheço nada nessa terra e é dever de um taxista conhecer a sua própria cidade” –, ai cumpriu-se o que diz a Palavra de Deus: “A palavra branda acalma o furor, mas a resposta dura suscita a ira”. O caldo entornou e eu vi o ódio e o Diabo no olhar daquele homem já cansado da refrega do dia. Era uma hora da madrugada quando tudo começou.
De súbito, o neurótico encardido me indagou, como se precipitando para a morte – “o Sr. já andou de avião na terra alguma vez? –, ao que eu respondi na força de quem não tava nem ai para viver ou morrer – “não, vai ser a primeira vez” –, disse querendo vencê-lo numa imperiosa arrogância. Então ele disse, soprando o seu bigode, - “hoje estou disposto a jogar-me no mar.” –; daí eu repliquei, – “pode jogar que do mar eu venho”. Aquilo foi a gota d’água. O inferno baixou ali e a morte quis tomar o volante.                
O velocímetro do Mercedes saiu 60 km/h para 200 km/h num piscar de olhos e o meu amigo no banco de trás, já se agarrava pelo teto. Onde houvesse buraco ele estava enfiando a mão e os pés para se proteger. Olhos esbugalhados, respiração ofegante, na alma uma prece e na pressa a náusea nos fazia salivar. A morte pediu carona naquele carro e nós vimos sua face e foice. O meu estomago colou nas costas e num ar de desafio mantive o tom de ironia na face. Viajamos assim por uns vinte minutos, enquanto em secreto orava rogando a Deus por sua intervenção.
Além da mão de Deus nos guardando, um viaduto curvo o fez desacelerar, e assim, chegamos ao hotel, sãos e salvos. Era para tudo terminar ai, contudo, o taxista não se dando por satisfeito, desfez a malignidade da face, mas não a retirando do coração perguntou-nos – “vocês querem jantar comigo? Eu conheço uma tabernazinha Alcântara que janto lá com uns amigos. Levo-vos lá, pois vocês a partir de agora são meus convidados; vai ser tudo por minha conta, venham comigo e assim, faremos as pazes”.
Desconfiado daquele Diabo coxo – como diria Guevara –, eu fotografei a placa do veículo, contei a história para o atendente do hotel, deixei as bagagens e instigado pelo amigo que, como eu e o coxo ele mesmo, estava morrendo à fome, nós seguimos para o lugar da angústia. Corre-se risco quando o estômago fala mais alto que a razão. Ademais, peixe morre pela boca.
Nós chegamos à taberna onde tudo era muito rústico, porém recheado de graciosidade. Queijos, pernis de leitão e outras degustações penduradas acima do balcão. Garrafas de vinho, wiskies e cachaças das mais diversas. Sentamo-nos e depois de olharmos o cardápio o nosso amigo coxo, designou o que seria melhor para nós – vitela assada, mais uma porção de batatas e finalmente uma salada de dar água na boca. Enquanto, dávamos um brief da nossa tímida vida, aquele indivíduo cavernoso bebia a valer. Lá pelas tantas, já alto por conta das bebidas ele pediu a conta e dizendo que seria dividida por três.
A nossa noite começou a embaçar daí em diante. O dinheiro só dava para quitar a nossa parte na janta, mas restavam as corridas de vinda e de retorno para o hotel e para tanto já nos tornávamos devedores. Ao informar-lhe que não tínhamos dinheiro para aquela conta exorbitante, a coisa acirrou-se de um modo tão terrível que, levando-me para o carro ameaçou-me mostrando a licença do seu porte de arma – “vocês vão ter que pagar ou a chapa esquenta” –, disse ele com frieza sepulcral.
Aturdido e notadamente preocupado, acudi o meu amigo que orava em silêncio e gemia enquanto passava o trem às duas horas da madrugada. Aproximei-me dele sob o olhar cortante do taxista e disse-o – “agora é hora do milagre de Deus. Só um milagre nos tira desta. Se Deus não fizer estamos encrencados”. –, chorando e profundamente entristecido o meu amigo também pastor, dirigiu-se claudicante para uma agência bancária de onde recolhia dinheiro quando vinha do Brasil, não obstante, não havia dinheiro a caminho, sobretudo aquele horário, uma vez que no aeroporto antes de tomarmos o táxi, verificamos e não havia nada na conta. O vi desaparecer na escuridão da rua, chance maravilhosa para fugir; mas para onde? Eu fiquei ali na mira do Cão medonho como cordeiro mudo preparado para o holocausto.
Aqueles minutos pesavam sobre os meus ombros e parado ali, eu orava, suava, gemia na alma e pedia perdão de todos os meus pecados; os que eu lembrava e os outros não lembrados iam a reboque. Vinte minutos depois, retornava o meu amigo com um sorriso ainda abalado na face. Bateu em meu ombro e disse – “Deus é fiel! Esse capeta perdeu! Deus é fiel e está conosco!” –, não precisava ser muito inteligente para saber o que acontecera, mas ele não me precisou o valor.
Seguimos viagem e ali no banco da frente eu me sentia o próprio Ayrton em Ímola, a 200 km/h. Lisboa quase se tornou para nós um caminho para a eternidade. O bêbado, Cão coxo recebeu o seu dinheiro, e nós ficamos com o restante dos duzentos e cinqüenta euros que apareceram na conta. Eu sei que foi a providência divina.
Subimos para o hotel e ali ficamos resenhando até umas horas a desdita.  
Caso você vás à Lisboa e pegues um táxi, tenhas certeza de que estás preparado para a vida eterna.