terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A Ressurreição De Lázaro!



A Primeira Igreja Batista de Quixangá fica num dos cantos da Praça onde, do lado oposto fica a concorrente do vigário, em torno da feira-livre que acontece todas as manhãs de domingos. Essa pequena cidade no oeste da Bahia fica perto da Cidade do Sol. Como eu fora convidado para ser o orador da série de Conferências por ocasião do seu aniversário, ali repousaria os pés e a alma por três longos dias.
Era incomum não haver a EBD – Escola Bíblica Dominical – por onde eu passava, mas ali a feira-livre tornava o processo pedagógico inviável pelas manhãs, por algumas simples razões – alguns dos irmãos daquela igreja viviam do que vendiam na feira; outros para viver dependiam daquilo que os irmãos vendiam e a igreja precisava da feira e de todos os que para lá iam, a fim de sustentar o pastor que além de ir à feira nela pregava o evangelho. Na feira o pastor estava sempre trabalhando.
A cidade inteira ia à feira, posto que nela, Deus e o diabo concorriam pelas almas e digladiavam pelos homens entre barracas, frutos, legumes e cacarecos. À bem da verdade, o pastor também precisava da igreja perto da feira e da feira perto da igreja, uma vez que dependia ele mesmo, da feira e da igreja, como os demais, que simplesmente sobreviviam de ambas. O fato é que tanto a feira quanto a igreja eram juntas, o coração econômico e social da cidade. Para ali convergiam anjos e demônios, santos e profanos, salvos e perdidos, o roceiro e o aristocrata, o rico e o pobre, o inculto e o artista bem como todas as noticias boas e ruins. Na feira todos era um só coração, visando o bem comum. Nela todos os credos e cores dialogavam.
O pastor, dono de uma barraca e de uma voz privilegiada, fazia valer seu talento de pregoeiro para vender seus produtos aos clientes curiosos que passavam os olhos sobre a mercadoria exposta ao Sol. Aqui e ali o santo homem de Deus entre gritos de “olha a laranja, a banana e a uva”, quando oportuno, amealhava uma alma com a pregação do evangelho. Eu mesmo o vi atuando com veemência sine qua non entre o santo e o profano. Quando inquirido sobre sua relação entre mundos distantes, este disse estar habituado à relação de levar a vida sendo ponte entre os abismos de suas tarefas, pois a vida exigia que o fizesse.
À noite a igreja estava em festa e abarrotada. Havia gente por todos os lados – nas janelas, nas portas e basculantes. Eu era o convidado especial, no entanto, ilustre mesmo era o Nazareno, que estava sendo celebrado com muito louvor entre os irmãos que em trajes de gala – verde, amarelo, vermelho, azulão, banco e outras cores fortes – embelezavam a cena e juntos agradeciam a Deus pelo dia que tiveram e pelos resultados da feira-livre.
Tudo ia maravilhosamente bem até a hora da apresentação da peça. Quixangá passou a ter para mim sabor inigualável. Apagaram a luz do santuário. Do altar, eu já não via a mais ninguém além dos que à luz dos postes postavam-se nas janelas. Nas cidadezinhas todos param para ver uma pantomima, sobretudo, àquela de tema tão esplendoroso: “Morte E Ressurreição De Lázaro”. A visibilidade fora voltando à luz de velas – as quais faziam parte da cena; um fundo musical de um som de guitarra desafinada dava tom à narrativa. Um narrador gago e tropicando nas palavras assentado no batente do meu lado, e o povo atônito esperando o que havia de vir.
De repente, algumas jovens vestidas com roupas características do mundo bíblico entraram tecendo o frágil texto que montava a história. Impressionado, eu sequer havia notado o sumiço do pastor. Imaginei que este tivesse ido resolver qualquer coisa de ordem fisiológica, pois não existe melhor hora para aliviar a bagagem que estas de intervalos no culto. Daí, sosseguei a minha mente concentrando-me no que se dava ali à meia luz.
A peça ia a vento em popa, todavia algo passou a me intrigar, uma vez que notara que da história de Lázaro tudo estava completo, com exceção do fato de faltar o objeto central da peça: o próprio Lázaro. Uma hora de enredo desenrolara ante os meus olhos, não obstante, Lázaro depois de morto não aparecia de modo algum. Eu irrequieto, indagava-me como este faria para reaparecer no santuário, visto que a casa estava lotada e seu último representante, um garoto franzino, havia sido levado por quatro outros jovens e franzinos atores para o lado de fora.
Não demoraria a ter a resposta de forma mais inesperada. Havia uma pequena porta dentro do santuário que dava para um pequeno quarto, onde era guardado o material da ornamentação da igreja. Eu só não podia imaginar que na hora em que as luzes foram apagadas o futuro Lázaro ressurreto daí viesse finalizar a peça com um doce sabor de vitória.
Eu confesso que tudo aquilo já estava me dando urticária, mas eu não podia perder a elegância, a final de contas, era a festa deles. O calor quebrava o nosso já fatigado corpo e extenuado eu via o relógio avançando para quase dez horas. Eu orava em meu espírito dizendo – “Meu Deus onde está o pastor que não aparece? Como pode, nem a peça termina com o advento do Lázaro nem o abençoado vem para dar seguimento ao culto”.
A minha prece foi ouvida muito antes que eu imaginasse pedir mais alguma coisa. O Jesus da peça. Um irmão alto, magro e manco gritando: “Lázaro vem para fora! Lázaro vem para fora!”
A porta do quartinho lateral se abriu, algumas luzes ascenderam para dar efeito especial e de lá da absoluta escuridão sai, aquela figura fantasmagórica, envolta num lençol grande e branco cobrindo todo o corpo, com um saco de papel de supermercado na cabeça, com três furos formando os dois olhos e a boca.  
A partir daí eu ria incontrolavelmente, desejando que o pastor viesse logo para retomar o culto. Entretanto, eu logo descobriria a relação existente entre o sumiço do pastor e a demora da peça. Para minha surpresa, o pastor era Lázaro e Lázaro o pastor. Ambos ressuscitaram ali, antes o meu olhar atônito. Bem que ele poderia ser Jesus como certo pastor que vestido num manto, estava mais para monge beneditino que para o Galileu que pretendia representar, numa outra cidade chamada de Quixangá do Sul, no sul da Bahia.
Foi assim que eu, aturdido, aos prantos e risos vim saber que o homem com o saco na cabeça era o meu anfitrião.
Nem tudo é o que parece.
As luzes voltaram a brilhar e eu terminei o meu dia rindo a valer de tamanha façanha.

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