quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Peixe Morre Pela Boca!



A última viagem que fiz para a Europa foi de uma preciosidade jamais provada na minha vida. Os ares do velho continente me enchem de contentamento e muita alegria, todavia, como todas as outras vezes que lá estive eu vivi experiências que me marcaram profundamente. No bojo do que passei eu guardei coisas agradáveis e tristes. Encontrava-me em Lisboa, retornando de uma maratona complicada na região do Porto, na cidade de Quixangá, eu e meu companheiro Pedro A. C. Bohr.
Em certas ocasiões de reveses, a vida se transforma em desertos, e nestes, só temos a nossa própria sombra como refrigério contra a incidência do Sol causticante. A suntuosa Lisboa tornou-se momentaneamente para mim, naquele dia galopante de estio emocional, uma alegria para a alma. Como esquecer o que ainda está vivo na memória? A memória alimenta-se do que é lembrado.
Tínhamos duas simples e não menos complicadas opções naquele aeroporto – ou passaríamos doze horas aguardando a hora do nosso vôo partir andando pelo aeroporto, ou rumaríamos para um hotel a fim de passarmos a noite; porém, como fazê-lo se nossos recursos não permitiam nossa livre locomoção? Eu lembrei que havia guardado algum dinheiro em real para o retorno, entretanto, insuficiente para uma hospedagem. O meu amigo já havia semanas estava amparado debaixo do meu guarda-chuva financeiro, restando-lhe apenas poucas moedas. Ambos fomos deixados para trás tendo as cordas cortadas por quem nos prometera amparar. Do fundo do poço, ressurgimos semimortos, feridos, famintos e extremamente exaustos. 
Depois de usarmos o cartão de crédito contabilizamos tudo e a soma restante em dinheiro foi a conta para um pernoite num hotel de primeira qualidade, visto que brindávamos à saída do fundo do poço com requinte de guerreiros que recolhe seus despojos após a guerra. Eu sequer me dei conta de que deveríamos tomar um táxi, ir para o hotel e ainda guardar alguma coisa para jantarmos. Assim, fizemos o que os instintos ordenavam.
Ao entrarmos no táxi notamos que o motorista estava saindo de uma confusão que de pronto acabou por nos envolver. Ao indagar-lhe onde ficava o hotel, o mesmo indignado disse-me ao sabor de seu sotaque lisboeta – “eu não estou aqui para dar-lhe informação alguma. O senhor deve saber para onde está indo” –, aquilo foi o bastante para startar o “velho homem” em mim, refiro-me ao da “idade da pedra”, a “pedra lascada”, o “Neandertal” em mim, sufocado pela passividade crística, ressuscitado por inconveniências religiosas, recém-saído do fundo do poço. Ao que o respondi asperamente – “eu estou pagando-lhe para que o Sr. faça o seu serviço. Não conheço nada nessa terra e é dever de um taxista conhecer a sua própria cidade” –, ai cumpriu-se o que diz a Palavra de Deus: “A palavra branda acalma o furor, mas a resposta dura suscita a ira”. O caldo entornou e eu vi o ódio e o Diabo no olhar daquele homem já cansado da refrega do dia. Era uma hora da madrugada quando tudo começou.
De súbito, o neurótico encardido me indagou, como se precipitando para a morte – “o Sr. já andou de avião na terra alguma vez? –, ao que eu respondi na força de quem não tava nem ai para viver ou morrer – “não, vai ser a primeira vez” –, disse querendo vencê-lo numa imperiosa arrogância. Então ele disse, soprando o seu bigode, - “hoje estou disposto a jogar-me no mar.” –; daí eu repliquei, – “pode jogar que do mar eu venho”. Aquilo foi a gota d’água. O inferno baixou ali e a morte quis tomar o volante.                
O velocímetro do Mercedes saiu 60 km/h para 200 km/h num piscar de olhos e o meu amigo no banco de trás, já se agarrava pelo teto. Onde houvesse buraco ele estava enfiando a mão e os pés para se proteger. Olhos esbugalhados, respiração ofegante, na alma uma prece e na pressa a náusea nos fazia salivar. A morte pediu carona naquele carro e nós vimos sua face e foice. O meu estomago colou nas costas e num ar de desafio mantive o tom de ironia na face. Viajamos assim por uns vinte minutos, enquanto em secreto orava rogando a Deus por sua intervenção.
Além da mão de Deus nos guardando, um viaduto curvo o fez desacelerar, e assim, chegamos ao hotel, sãos e salvos. Era para tudo terminar ai, contudo, o taxista não se dando por satisfeito, desfez a malignidade da face, mas não a retirando do coração perguntou-nos – “vocês querem jantar comigo? Eu conheço uma tabernazinha Alcântara que janto lá com uns amigos. Levo-vos lá, pois vocês a partir de agora são meus convidados; vai ser tudo por minha conta, venham comigo e assim, faremos as pazes”.
Desconfiado daquele Diabo coxo – como diria Guevara –, eu fotografei a placa do veículo, contei a história para o atendente do hotel, deixei as bagagens e instigado pelo amigo que, como eu e o coxo ele mesmo, estava morrendo à fome, nós seguimos para o lugar da angústia. Corre-se risco quando o estômago fala mais alto que a razão. Ademais, peixe morre pela boca.
Nós chegamos à taberna onde tudo era muito rústico, porém recheado de graciosidade. Queijos, pernis de leitão e outras degustações penduradas acima do balcão. Garrafas de vinho, wiskies e cachaças das mais diversas. Sentamo-nos e depois de olharmos o cardápio o nosso amigo coxo, designou o que seria melhor para nós – vitela assada, mais uma porção de batatas e finalmente uma salada de dar água na boca. Enquanto, dávamos um brief da nossa tímida vida, aquele indivíduo cavernoso bebia a valer. Lá pelas tantas, já alto por conta das bebidas ele pediu a conta e dizendo que seria dividida por três.
A nossa noite começou a embaçar daí em diante. O dinheiro só dava para quitar a nossa parte na janta, mas restavam as corridas de vinda e de retorno para o hotel e para tanto já nos tornávamos devedores. Ao informar-lhe que não tínhamos dinheiro para aquela conta exorbitante, a coisa acirrou-se de um modo tão terrível que, levando-me para o carro ameaçou-me mostrando a licença do seu porte de arma – “vocês vão ter que pagar ou a chapa esquenta” –, disse ele com frieza sepulcral.
Aturdido e notadamente preocupado, acudi o meu amigo que orava em silêncio e gemia enquanto passava o trem às duas horas da madrugada. Aproximei-me dele sob o olhar cortante do taxista e disse-o – “agora é hora do milagre de Deus. Só um milagre nos tira desta. Se Deus não fizer estamos encrencados”. –, chorando e profundamente entristecido o meu amigo também pastor, dirigiu-se claudicante para uma agência bancária de onde recolhia dinheiro quando vinha do Brasil, não obstante, não havia dinheiro a caminho, sobretudo aquele horário, uma vez que no aeroporto antes de tomarmos o táxi, verificamos e não havia nada na conta. O vi desaparecer na escuridão da rua, chance maravilhosa para fugir; mas para onde? Eu fiquei ali na mira do Cão medonho como cordeiro mudo preparado para o holocausto.
Aqueles minutos pesavam sobre os meus ombros e parado ali, eu orava, suava, gemia na alma e pedia perdão de todos os meus pecados; os que eu lembrava e os outros não lembrados iam a reboque. Vinte minutos depois, retornava o meu amigo com um sorriso ainda abalado na face. Bateu em meu ombro e disse – “Deus é fiel! Esse capeta perdeu! Deus é fiel e está conosco!” –, não precisava ser muito inteligente para saber o que acontecera, mas ele não me precisou o valor.
Seguimos viagem e ali no banco da frente eu me sentia o próprio Ayrton em Ímola, a 200 km/h. Lisboa quase se tornou para nós um caminho para a eternidade. O bêbado, Cão coxo recebeu o seu dinheiro, e nós ficamos com o restante dos duzentos e cinqüenta euros que apareceram na conta. Eu sei que foi a providência divina.
Subimos para o hotel e ali ficamos resenhando até umas horas a desdita.  
Caso você vás à Lisboa e pegues um táxi, tenhas certeza de que estás preparado para a vida eterna.     

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