sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Meus Amigos Ciganos Portugueses


        Eu já passei por muitas coisas boas nesta vida, mas nada se compara ao que desfrutei e vivi entre os ciganos portugueses nas poucas vezes que estive entre eles. Minha alma ligou-se à terra portuguesa de tal modo que, volta e meia sonho nela chegando. Há sempre uma esperança de lá estar, cruzando suas ruas como o sangue que percorre as artérias vitalizando o corpo.
Quinze anos após pisar pela primeira vez naquele lugar encantador, ainda fecho os olhos para vê-lo, fascinado em minha imaginação. Não é assim que a gente faz quando ama alguma coisa ou lugar? Ovar, Espinho, Santa Maria Da Feira, Porto, Gaia, Felgueiras e a belíssima Vila do Conde. Tudo que a alma de um poeta precisa para ser feliz está ali. O amanhecer de manhãs frias com réstea de Sol na janela ao som da voz da vendedora de peixes dizendo – “carapaus fresquinhos dos nossos mares”.
Não sei o que fazer, pois me sinto ligado àquela terra simbiótica, almaticamente e poeticamente. Tudo em Portugal me encanta, da paisagem ao clima, das pessoas aos cheiros dos cafés onde podemos simplesmente sentar, prosear um pouco, enquanto lê-se um jornal do dia para saber o que os brasileiros fizeram na última partida de futebol. Entretanto, das coisas mais belas, foi a comunidade cigana que me marcou profundamente.
Eu era garoto quando os encontrei pela primeira vez em Espinho. Entre muitos amigos ciganos eu conheci os Maia, gente com a qual criei afinidade e pela qual fui acolhido dando-lhes como resposta o meu amor e respeito. Aos meus olhos eles sempre foram fascinantes. Vestidos com suas roupas características, um linguajar peculiar, faces belas de homens e mulheres feitos para a alegria. Eram firmes, amáveis, dóceis, sobretudo sérios quanto à tradição e à fé em Jesus Cristo e como eu, dado que eram entregues aos fartos e apetitosos manjares celebravam a vida à mesa. Na minha frágil inculturação entre eles, aprendi com profundidade o sentido da palavra família, honra e alegria, onde acontece de fato o lema emblemático dos Mosqueteiros – “um por todos e todos por um”. Ainda me lembro de com eles andar, ver nascerem seus filhos, viver seus lutos, estar à mesa com eles, ver seus olhos brilhando nas danças e louvores, com eles cantar e tocar, abraçá-los, presenteá-los e ser por eles presenteado. Tudo isso me trouxe grandes alegrias.
Foi ao lado de um deles que eu, a caminho do Porto, na iminência de comer uma “Feijoada Transmontana”,  prato da culinária cigano-portuguesa degustado à mão. Era um amigo inesquecível que cuidava da minha solitária alma em dias de poucas chuvas. Dentro de uma camioneta, narrou-me uma porção da sua cultura que aqui capitula mais uma pérola preciosa, para meus débeis textos, escritos afim de perfumar o mundo com poemas e versos de amor. 
Ao ser indagado sobre o matrimônio cigano o meu amigo passou-me a dizer:
– “Entre nós ciganos uma das cerimônias mais importantes é o casamento. Nós prezamos pela honra e nossos filhos se casam cedo, pois os seus filhos crescem com a gente. Vivemos e envelhecemos juntos. Quando morre alguém sofremos muito e o nosso luto além de doloroso não pode ser quebrado. Respeitamos nossos mortos. No entanto, é quando nasce alguém em nosso clã e quando nos casamos que a alegria floresce altaneira”.
Diga-me como acontece o vosso ritual de matrimônio – pedi curioso devotando-lhe dobrada atenção, sendo que já havia muito eu esquecera a estrada e a beleza das paisagens ao redor.
“Convidamos os amigos, os anciãos da comunidade e as famílias festejam por quase quinze dias” – disse ele com um brilho no olhar – “os noivos são prometidos um para o outro desde muito cedo, ainda crianças, e os pais nem eles mesmos podem quebrar o acordo. Caso isso venha a acontecer gera-se um mal-estar muito grande entre as famílias. Em alguns casos pode até gerar morte. No dia marcado, a família do noivo dá o lenço branco com bordados a gosto, comprado com muito zelo, visto que será guardado depois do ritual por toda vida”.
– Ritual? Qual ritual meu caro? – questionei querendo entender o que ele falava com tanto esmero, pois não tratava de efemérides.
– “Sim, o ritual é a parte mais importante dessa cerimônia. A anciã convidada, uma das mais velhas da comunidade, seguida de mulheres das duas famílias, leva a noiva para um quarto e de posse do lenço branco dado pela família do noivo, será posto no dedo polegar anciã para quebrar o hímen da rapariga” – disse ele com muito cuidado nas palavras, visto que se tratava de um tabu de alto relevo entre os ciganos. Todavia, como estávamos os dois apenas, se sentiu um pouco mais a vontade para falar-me mesmo que usando como mecanismo de defesa o baixar do tom da voz, cochichando e tartamudeando para não parecer leviano.
– E daí? – Indaguei curioso.
– “E daí que um mistério divino acontece. A "Estrela de Davi" se forma no lenço branco” – disse-me ele.
– Como é? – inquiri atônito.
– “É isso mesmo, a Estrela de Davi. Há um liquido oleoso que só existe nessa parte do corpo da mulher e quando forçado pela anciã na frente das testemunhas, forma no lenço a Estrela de Davi em óleo e sangue e nunca mais se apaga. Essa é nossa aliança. Revela a virgindade da rapariga e abre o ciclo da relação conjugal até ao dia da morte. As anciãs saem do quarto e trazem a noiva e o lenço para a família do noivo e a partir daquela data as famílias se unem ferrenhamente”.
– O que acontece quando morre um jovem casado? – perguntei desejando aprender o máximo.
Ao que me disse ele:
– “Uma tristeza muito grande se nos abate. A família faz o luto, apóia os filhos e ao cônjuge que ficar só. Este não poderá casar novamente, sendo que para as mulheres a regra é mais rígida. Se ela o fizer será banida da família, malvista na comunidade e perderá a guarda dos filhos. Prezamos a indestrutibilidade da família e do casamento”.
Chegamos à casa e aquele homem de barba feita, alinhado e uma calvície despontando mostrava a maturidade daquele guerreiro que se fez menino na alma casa a dentro, devotando total cuidado aos filhos, à esposa e sem esquecer do seu convidado.
Foi assim meu caro leitor que eu andei entre o povo que na Europa está abrindo o coração para o evangelho e geme de amor pelo Senhor Jesus Cristo. Ainda escuto as suas afinadas vozes altissonantes adorando a Deus. É assim, que mato a saudade, vejo suas fotos e ouço suas canções.      
  Vai aqui uma dica, indo a Portugal e tendo sobrevivido ao taxista maluco, não deixe de pedir uma Feijoada Transmontana à cigana da região do Porto.

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