quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Coisa do Cão!






Certa vez eu estava na cidade Feira de Santana vivendo nela dias áureos, posto que, para mim, sempre a considerei como sendo a minha “Terra da Promessa”. Eu conheço essas terras desde tenra idade e nela cresci ouvindo sobre seus cognomes e sua exuberância, para Ruy Barbosa ela era a “Princesa do Sertão, mesmo estando no agreste; para Pedro Calmon é “Porta Áurea da Bahia". 
Terra de Maria Quitéria que a nomeou como a "Cidade Patriótica", Ovídio de Boaventura batizou-a como a "Cidade Escola"; "Cidade Formosa e Bendita" foi como Georgina Erismann descreveu em sua poesia e finalmente, o Presidente Jânio Quadros deu-lhe como alcunha a "Cidade Progresso". 
Hoje eu acho que esta cidade deve ser chamada de “Planície Adorável”, lugar onde a vida escoa como escoam as águas frescas de ribeiros caudalosos. Nela a minha alma desfruta o peso de uma história de amor e saudade. Dela eu desejo que as minhas filhas cresçam e deixem boas recordações. Feira de Santana é mais que um centro comercial, para mim ela é poesia, é agreste na cor e no tom de sua voz, voz que se faz ouvir no soar do vento e cantar das aves. Aqui eu construí minhas saudades mais doces e finquei as sebes da memória.
Sinto meus pulmões existenciais serem purificados toda vez que, após longas jornadas, retorno para ela e entro pelo portal do sertão. Os meus olhos brilham ao divisar suas lagoas, riachos e fontes nativas. A esta terra eu chamaria de “Pátria Minha”, visto que nela cresceram minha mãe, meus irmãos e eu.
Entretanto, esta terra linda cujo solo contém argila, caulim, areias, arenitos, granulitos e minerais tornou-se palco de uma das mais notáveis situações da minha vida. Dessas que a gente não espera e repentinamente nos surpreendem.
Eu pastoreava na cidade e numa dessas visitas de fim de tarde, a fim de socorrer uma família que estava atravessando uma crise estrutural, eu segui diluindo minhas preocupações em orações e suplicas pela estrada. Ao meu lado vinha como escudeiro um crente. Desses que a gente insiste e teima com a razão em ensinar mesmo sabendo que no coração não há espaço para aprendizado. No entanto, motivado pelo amor eu o convidei para comigo viver mais um episódio de um ministério que floria entre os tabuleiros e planaltos de uma terra que “em se plantando tudo dá”. A terra era boa, alguns homens da terra é que de fato eram agrestes e inférteis.    
O notável irmão parecia um gigante e sua compleição não diferia muito da de um guerreiro pacificado. Eu a mercê da sorte me dava ao luxo de caminhar sem lenço e sem documento. Na verdade eu tentava me livrar de um futuro quadro de apoplexia que parecia querer me sobressaltar, uma vez que não fazia muito tempo eu escapara de coisa semelhante na Inglaterra de onde eu viera.
Eu não podia na verdade tomar sustos grandes, pois meu quadro hipertensivo estava desequilibrado. Tomando todos os cuidados do mundo me fiz orante na terra do sol. A nossa estada naquela casa, no bairro de Quinxangá, pensava eu, deveria ser rápida e objetiva, porquanto eu não andava bem para confrontos ou debates mais arrojados, e, só Deus sabida o que me esperava.
O céu estava limpo. As chuvas de outono-inverno rareavam e o cerrado grassava os campos. A caatinga xenófila possuída de arbustos espinhosos cujas raízes acumulam água e aprofundam-se no chão (o mandacaru, a palma, o xique-xique e outros) acolhe o homem cujo coração agreste, segue em frente rumo ao seu descanso eterno.
O portão estava aberto e num lance de insana simplicidade adentramos para esperarmos a dona da voz que gritava dos fundos – “Estou indo! Aguardem mais um pouquinho”. Aquela casa, eu confesso, aparentemente não representava nenhuma ameaça pelo seu aspecto de casas quando escondem as flores. Todavia eu não perdia por esperar.
De repente, de lá de dentro, sai na nossa direção, um cão com a cara do Cão. Eu saberia descrever a raça, não fosse o desespero que de sobressalto se me deu. Os olhos ficaram turvos, a tensão ficou hiper e minhas veias saltavam no corpo e como um leão para a caçada eu me preparei para correr.
Era um rottweiler. O bandido – refiro-me ao cão – tinha sua origem entre os romanos, e lá fora criado como um cão de guarda e boiadeiro. Este por natureza era acostumado a seguir as legiões romanas entre os Alpes, sua tarefa era guardar os homens e tocar o rebanho. Os rottweiler vieram de uma região chamada de Rottweil. Miscigenado e cheio de ódio contra os invasores, aquele estava apenas defendendo os seus donos bem como o seu patrimônio. Na verdade, era apenas um cão-pastor tendo o cuidado de evitar a exploração do rebanho. Ele estava certo. Tem de tudo nesta vida, o cão do pastor, o cão-pastor, o bom pastor e o pastor do Cão. Tem até, o Cão virado num cão, para atacar pastores em sua missão de amor. 
         Com os pés cravados no chão, sem mover um dedo sequer, eu respirava pelos olhos. O meu companheiro não menos quase-apopléxo do que eu, dotado de táticas de defesas, procurou logo o seu lugar ao sol. Subitamente, este se apropriou de uma pá, dessas gigantes que a gente usa para cavar até ao Japão. Erguendo-a, pulou na minha frente, arqueou os braços e deu um grito que limpou suas vias guturais. Foi cavernoso aquele negócio. 
         Estacado ali, vermelho e disposto a matar o seu inimigo, ameaçava-o com a pá enquanto, aturdido, voraz e sem mais nada pensar, fez o cachorro pensar duas vezes. O massudo cão policial se deparou com um policial de patente mais elevada e zarpou dali como um gatinho fujão.
        Lá dos fundos, a dona da casa, do cão e da voz que gritava, dizia – “Rex, é o Pastor Rex, é o Pastor! Venha cá Rex! Oh meu Deus do céu, é o Pastor Rex!”. Agora, diga-me, por favor, meu caro leitor, Rex sabia lá que veneno é esse negócio de Pastor? Saberia ele distinguir as profissões ou o sacerdócio? Rex nem à igreja ia!
Foi assim que, no dia em que eu fui consolar a uma família em conflito, eu tive que ser socorrido, por conta de que, pálido, já perplexo pelo susto que levei, com medo de ser devorado por um marrento rottweiler, e, pior que isto, com o total receio de o admirável guerreiro dar uma pazada como golpe de misericórdia no Rex e levá-lo a óbito. Ai que seria a tragédia. 
Acolhidos na casa, conselhos dados, pés rumando de volta para o ponto de partida, a alma se fez silêncio na cadência do coração que batia a galope, enquanto a mente pensava os últimos e fatídicos eventos, parti ainda lembrando-me daquela senhora que quase aos prantos, indagava se iríamos de fato matar o seu tão amado cãozinho de estimação.
      Foi assim, que eu aprendi que nesta vida, neste mundo de meu Deus é possível a um pastor perder ovelhas matando um cão. Coisa do Cão!

Nenhum comentário: