quinta-feira, 26 de maio de 2011

A Queda Do Juiz!



Era inverno. A gestação da minha filha mais nova estava a vento em popa. Aquele fora um tempo de muitas surpresas entre as chuvas. A cidade de Quixangá ainda preservava as flores; as que restaram do amor e do afeto do último outono. Um ar fresco percorria as esquinas, os corredores e as coberturas das casas feitas para primaveras e verões. O olor do inverno é sempre marcado pela morte das pétalas de flores friorentas. Quando as flores morrem de frio, o meu corpo já há muito se sabe mumificado. É assim, há corpos mais sensíveis que as pétalas. Flores e alegrias póstumas deixam marcas para estações vindouras. Os corpos falam, como falam os mortos. No inverno tudo cai. As flores, as pétalas, os corpos caem e, até juízes maduros se esparramam pelo chão como batatinhas quando nascem espalham as ramas.
A minha advogada, Sra. Vinhas, alegre, exuberante e madura, feito uvas nas parreiras das vinhas do sul, marcara o horário do encontro no Fórum Central da cidade de Quixangá. Era cedo. A cidade, como todas as outras, seguia, às vezes silenciosa, outras vezes, agitada, feito águas de um rio que desce as serras. Eu acordara cedo e, lá já estava, à espera de um milagre. As parcelas do Consórcio do veículo que eu sonhava que me tiraria daquele, a que eu chamava de cicatriz. Cicatriz me deixara na mão muitas vezes. Eram muitos os seus defeitos. Além de ser um carro velho, tinha o hábito de sair da marcha no meio das ladeiras, nas subidas, quando todo carro precisava de força, ele negava a sua, para mim. Desesperado, muitas vezes, vi-me voltando de ré, tendo vários carros atrás do meu, buzinando, ou ainda parado, impedindo a caminhada dos outros e, dava até, para ver os braços e cabeças das pessoas para o lado de fora, eles pareciam alegres e, dali, do meu cockpit, dava para ouvir suas palavras. Eram palavras grandes; algumas vezes mencionavam alguma coisa sobre a minha mãe, ou me comparavam com um certo bicho parecido com o alce. Eu sempre desconfiei que os moradores de Quixangá, estavam me elogiando, naquelas ocasiões. E minha mãe parecia ser famosa por ali. Eu sei que eu ficava era alegre. Um pouco tenso na verdade. eu me sentia um candidato, todo mundo me acenando na rua, digo, nas ladeiras. 
O desempenho do cicatriz, nunca me impediu de ser feliz. Eu até corria com ele na chuva, e na águas das ruas eu era seguido por muitos. Sempre aparecia alguém para empurrar e, eu mesmo o empurrava quando o motor falhava nas quatro estações. Porém, por ser a álcool, cicatriz não suportava o inverno. Daí o desejo de trocar de carro. eu queira um que fosse menos dependente do álcool. Menos alcoólatra. Mas como eu ia dizendo, as parcelas que começaram baixas, foram ganhando os céus e meus parcos recursos não permitiam que eu pagasse as mesmas, bancasse o cicatriz e ainda esperasse o bebê. A minha sorte foi que, a minha advogada era minha amiga e nada cobrou das custas do processo.
Estávamos todos lá. As portas se abriram e seguimos para o local da Conciliação. Eu, o preposto da empresa rival, minha advogada e o Juiz. Havia um ano, eu dera entrada ao processo e aquela seria a tacada final. Um ar de formalidade tomou conta daquele lugar de mesa feita de vime, cadeiras acolchoadas e muita pompa. O preposto propunha a favor da empresa. Minha advogada voava alto como uma ave protegendo sua cria, me defendia com justiça e convencimento. O Juiz. Ah! O Juiz! Este julgava os discursos, enquanto, soberano, me via indefeso. É verdade que eu não era uma ofensa para ninguém, a não ser para os motoristas que subiam as ladeiras atrás do cicatriz, e também eu não era uma ameaça para aquela portentosa empresa. A sentença não tardaria a vir. Mas não antes da tragédia.
Digo tragédia, pois, o que passo a narrar me custou a prisão do riso para não perder a causa. Você sabia que uma risada fora de hora pode fazer você perder muitas coisas. Rubem Alves diz que o riso é quando o corpo é verdadeiro e não consegue esconder a verdade que observa. O riso denuncia a verdade que percorre o corpo. Mas como rir se a sentença ainda estava na mão do juiz? De quem era a culpa? A culpa na verdade parecia ser da cadeira de rodinhas, achava a minha advogada. Essas invenções modernas que desconcertam as pessoas que trafegam sobre elas. Coisa que o Juiz fazia sem medo. Eu, particularmente, achava que a culpa foi do fio atravessado na sala, sobre o qual passavam as rodinhas quando como um raio o Juiz flutuava na sala. O preposto achava que a culpa era do Juiz, pois este decidiu sentar-se na ponta da cadeira. O Juiz achou que a culpa era do seu auxiliar, o rapaz que escrevia a sentença, imediatamente, atrás do juiz, no canto da sala. Ele poderia ter trazido a folha para o seu chefe, mas ao invés disso, chamou-o para que pegasse. O rapaz achava que a culpa era dos clientes, pois tiravam a atenção do Juiz, de sua performance, a qual estava habituado a fazer sem maiores problemas.
Numa das muitas voltas sobre o fio, sobre as rodinhas da cadeira e sobre nossas ansiosas almas, o corpo do Juiz desabou ao chão. Caiu como uma jaca madura. Com ele caiu a minha sentença. Todos riram daquela inusitada cena. Vermelho como um pimentão, desconcertado e limpando o traseiro, o pobre homem togado, agora envergonhado, disse que aquilo acontecia com as melhores famílias de Nova York. Apavorado, eu não entendi a relação com os novaiorquinos, mas calado ali, eu passaria por inteligente, se nada dissesse. A minha advogada ria-se a gargalhadas e eu dizia a mim mesmo, “perdi a causa”. O preposto rolava de rir e o auxiliar já nem respirava de alegria. 
Meu caro leitor, a coisa foi feia naquele dia no Fórum de Quixangá.

Eu ganhei a sentença. Vendi o cicatriz e vi nascer a pequena Tábatha, meses depois, no entanto, eu jamais esqueci daquele olhar. O olhar do Juiz sentado ao chão. O rei estava nu, ante seus súditos. Ali eu descobri que em terra de sapo, de cócora com eles.  Eu aprendi também que, quem ri por último, ri atrasado.    

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