Hoje ao tomar o chá da tarde, eu tive uma sutil sensação de reviver um afeto que se fez verdade em mim, por alguém que muito amei. O amor é assim, insiste em encher de esperança o coração de quem a ele se entrega. É como raiz de uma árvore que padece numa terra árida, a qual, ao cheiro das águas, reverdece e viceja, ali onde só havia sequidão.
Tê-lo assentado na varanda me inspirava a ver com ele o pôr-do-sol. Foram muitas as tardes que passei ao seu lado, ouvindo prosas gostosas, contadas mil vezes, mas ouvidas como se fossem a primeira. Naqueles dias eu não tinha outra alegria. A simplicidade, a ternura, o afeto e a cumplicidade entre nós eram o chantili de uma torta feita de vida, flor e alegria.
O meu sogro, Sr. Maneca, caminhava para os seus oitenta e poucos anos, quando sorria, realçando as tardes de domingos, ao som da sanfona mal tocada por mim ou por ele mesmo na primavera. De Luiz Gonzaga só tínhamos na lembrança a Asa Branca e nele, a saudade da terra natal e imensa.
Eu sentia que ele gostava muito de mim, chegava até a me confidenciar segredos seus; querelas de uma lucidez que insistia em dar o ar da sua graça. Além da profundidade do seu olhar, o que mais me impressionava nele era, seu senso de humor aguçado, sua paternidade acolhedora e sua maneira de lidar com o que não o agradava. Ele brincava e brigava com quem quer que fosse num lance de segundos, menos comigo.
Assistir filmes ao seu lado, assentados na mesma cama, passou a ser nosso playground mais divertido; ele fugindo da morosidade dos dias que, com os anos, pesavam-lhe os ombros, as pernas, a cabeça e o corpo inteiro, e eu, fugindo de meus pardos algozes, aqueles pobres demônios, que se disfarçavam, invisíveis, escondendo-se atrás certos infelizes que nos guetos religiosos esmagavam a vida, a alma e o corpo de quem sonhava ver um reino de Deus estabelecido na terra.
Tomado pela alegria o meu sogro, sequer me deixava ver um filme inteiro, pois tinha que me falar de coisas que inacreditavelmente, só lembrava na hora que a película ia a vento em popa. Com o tempo eu percebi que não adiantava teimar com sua inopinada lembrança. E assim, pacientemente eu o escutava, e ria com ele. Na verdade o filme passava a ser nada diante de tamanho contentamento; servia apenas como um meio para justificar as horas que passávamos juntos e para entremear silêncios. O meu sogro era um homem forte. Depois de muitos infortúnios na vida atravessou um câncer assim, e eu naveguei com ele até que chegasse ao porto. Só lamento o fato de ele ter me deixado navegando sozinho no mar da vida. As coisas, por mais que belas que pareçam não são mais as mesmas. Elas tornaram-se poesia sem profundidade, noite sem estrelas, jardim sem flores, sem abelhas e sem beija-flores.
Eu só me dei conta da sua partida quinze dias depois. Ele insistia em manter-se vivo na minha então “memória recente” que recusava sepultá-lo, eu ainda o buscava nos espaços vazios. Havia quatro outros grandes protagonistas no santuário que me acolheu ferido muitas vezes e transformara minhas dores em sorriso. Como a arca de Noé, ali havia bichos e homens, meninos, mulheres e Deus segurava a chave da vida e dos segredos mais tenros.
O pequeno Gabriel, meu companheiro de alegria e desventuras, menino de olhos azuis, alvo e amoroso. Smook, um cachorro pinche pequeno e perverso, mas ousado protetor do seu velho dono, do louro, e do pequeno Helder, fiel escudeiro de todos, quando em tempos de festejos e reencontros. Eles habitavam um mundo quase perfeito.
Quero devotar minha atenção ao louro, visto que suas façanhas ganha relevo e notoriedade nestes versos. Nas minhas ausências, eram eles que seguiam no barco com o velho marinheiro. Havia um quê de cumplicidade entre eles, inviolável. O velho protegia os meninos, solitários e cheios de esperanças. Os meninos protegiam o cachorro e este protegia o velho, os meninos e o louro. Por sua vez, o louro, imponente, protegia a todos. Era da janela que ele vigiava a casa num silêncio peçonhento e medonho.
Eles não eram muito receptivos quando alguém surgia para quebrar a beleza da vida que corria nas veias do tempo naquela casa. Embora os visitantes fossem bem recebidos pelos moradores, os bichos insistiam em não negociar como anfitriões. Foi assim, e por causa disto, meu caro leitor, que o mais terrível dos eventos ocorrera.
Ao tocar a campanhinha, o velho gritava como de costume: “pode entrar e fecha o portão”. Depois que caiu do telhado e quebrou a perna, o velho já não podia se locomover tão facilmente, o que promovia as diversas e não tão demoradas visitas.
Um dos meninos corria para ver quem chegava e nisso revezavam sempre. O cachorro tomava de assalto o visitante ainda do lado de fora, enquanto, inocente, sequer imaginava o drama do corredor polonês pelo qual tinha que passar para chegar ao velho, guardado como uma abelha rainha por seus súditos fiéis debaixo de sete chaves. Fechar o portão era a última coisa que deveriam fazer, dada a tamanha agonia à qual seriam vítimas.
_ Trimmmm. Trimmmm.
Tocou a campanhinha altissonante. Era o Sr. Januário, um ancião elegante, sorridente, piedoso e esguio. A sua fé e educação não o defenderiam dos desarranjos iminentes, mas demonstravam sua religiosidade e boa vizinhança.
O menino como sempre partiu veloz e gracioso para ver quem chegava. Na frente dele, passou o cão raivoso, destilando fúria e mostrando a cara feia numa carranca que arrancava o sorriso de qualquer um que chegasse.
Portão aberto, saudações alçadas, a porta da frente vencida pelos primeiros passos, depois da quietude do cachorro que dessa vez desapareceu fortuitamente, com receio do que sucederia, uma vez que o louro se antecipou ao velho e driblou o menino. Em dias como estes o cachorro era o primeiro a cair fora desesperado, visto que não topava a pressão e a possessão maligna do louro que arqueando suas asas, vinha rasteiro e fumegante à caça do seu desafiante.
Pobre Januário! Caiu na rede como um peixe. Ficou ali na teia da aranha! Atrás de si um portão fechado. O cão ladrando como se estivesse sorrindo, o menino sorrateiro se ria da desgraça alheia e o louro fundava dentro com seu estridente arpão no bico enquanto, aos gritos Januário subia pelo sofá da sala, fugindo do seu inimigo vespertino.
Só Deus meu amigo para livrar Januário daquela pirraça. O louro trincava o bico. Era currupaco-papaco! Para lá e currupaco-papaco! Para cá. E Januário com a cabeça perto do telhado, olhos esbugalhados, todo empertigado, pulava de um sofá para outro aos berros. A desdita era maldita. A cena seria cômica, não fosse trágica. E desse modo, muitos caíram nessa armadilha social. Depois de muitos – “Deus me acuda”, o sujeito não mais voltava, e assim a paz se estabelecia naquela casa.
Eu mesmo fiz a trajetória de Januário, e vi a muitos outros sofrerem tanto com o cachorro que mostrava as presas ferozes, quanto com aquele louro do cão. Ou talvez, era o cão louro ou o louro cão. Seja como for, foi um pega para capar terrível. Aqueles dias foram hilariantes.
Smook o cão perverso, morreu envenenado depois que foi atropelado no asfalto. Os vizinhos passaram a ser atendidos pela janela do quarto de onde o onipotente louro de pirata exibia suas unhas. Não mais entraram por causa do ‘coisa ruim’, o incrível Hulk de asas, verde e estressado.
O menino de olhos azuis cresceu e agora pastoreia Pituca, a nova cadelinha que ora anima-os por ali, diuturnamente. O cão esverdeado, ainda está lá, no alto do seu ninho, imponente, alimentando os pardais e ameaçando os desavisados. São poucos os que o dito cujo permite deixar sua cabeça a mercê de afagos.
Dizem que louros vivem duzentos anos, mas este, afetado por uma catarata amuou com a partida do velho, do cachorro Smook, ao qual perseguia e com a despedida de Helder, o outro menino, o único que desfrutava, além do seu avô, da confiança do louro e o alimentava quando este estava por perto. O velho seguindo viagem se foi, deixando em nós um vazio sem monta. O pequeno Helder amadureceu e mudou-se para o lugar do seu sonho, a casa de sua mãe.
Quanto a mim, os vejo de vez em quando, já tendo exorcizado os demônios de outrora. Sigo enfrentando a saudade, as perdas e as alegrias que advêm àqueles que prosseguem na estrada da vida ao lado de Talitha, Tábatha e Emanuel, futuras herdeiros do louro que parece viver e ainda vencer gerações no seio da nossa família.
Tempus Fugit!
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