quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Abóboras Roubadas. Serão Mais Doces?




O canto dos bem-te-vis me despertou feliz numa manhã de neblina e Sol brando. Acordar assim, ainda é uma raridade nas cidades possuídas de um veludo de poluição e morte.

Por noites a fio, em silêncio, a aboboreira deitou suas ramas em meu quintal. Nasceu ali, livremente, gratuitamente. Elas surpreenderam-nos a todos. Cresceram ai, escondidas do nosso olhar. Não lhes ensinamos nada. Não lhes dissemos nada. Não houve manipulação alguma. Terra e grão, água e Sol, somente.

Assim, logo me vi andando sobre suas folhagens belas e felpudas. Aprendo com as abóboras como nasce e cresce o amor. É simplesmente assim, à luz da lua, à noite ou de dia. Nasce, floresce, frutifica e fica. De suas ramas e galhos brotam outras ramas e galhos, que gestam outros frutos. Desdobramento de quem ama apenas por ser feliz; livre e por ser fruto.

Amor é fruto que se doa; se entregam sem reservas. Inopinadamente estende suas ramas nos quintais diversos. As abóboras são assim, simplesmente amam: crescem, irrompem; migram, espalham-se, se escondem, tomam espaços e fecundam. Acontecem ali em silêncio.

           Eu mesmo caminhei na plantação para achar seus frutos. Encontrar frutos requer a procura. Os vi diversos e belos. Três deles eram as primícias. Magia em forma de frutos. Eram mais de vinte quilos diante dos meus olhos. Acariciei-os com o olhar e as mãos. Amei-os, fruto no pé! Sonhei vê-los crescer sem pressa, sem a ânsia da devora frutofágica. Degustação de quem ama o fruto enquanto fruto na plantação e não como comida no prato.

Lembrei-me da poetisa portuguesa, Florbela Espanca quando disse: "É pensando nos homens que eu perdôo aos tigres as garras que dilaceram." O fato é que o destino dos frutos é o estômago ou o eterno retorno para a terra de onde veio. Entropia de frutos deixados para trás. Os frutos vivem e morrem de todo jeito. Frutos eternos são frutos amados. O amor eterniza a tudo.  

Foi assim que um novo evento abalou a minha alma. Algum desventurado alardeou pelas ruas a existência das minhas abóboras. Foi o suficiente para que roubadores de abóboras invadissem meu quintal e as levassem para longe do lugar do amor. Ladrões sem alma. Ai eu indaguei a mim mesmo: quem teria falado das minhas abóboras para os tais?

         Eu fiquei pensando comigo mesmo, enquanto eu andava no meio das outras abóboras, as não roubadas, quais teriam sido as razões por trás daquela infâmia: inveja? Maldade? Ambição? Fome? Pularam o meu muro, na minha ausência e tiraram de mim o que eu simplesmente amava e estava encantado. Doeu. Fiquei com raiva. Não dormi. Murmurei. Embruteci-me.

Pensei em colocar cercas elétricas, chamar a policia, denunciar, dizer coisas insólitas. Entretanto, logo eu recordei da minha infância. Quantas vezes eu me alimentei de frutos roubados no pé, nos quintais alheios: mangas, sapotis, tamarindos, laranjas, tangerinas, cocos, canas, mas abóboras não. Eram dos frutos os mais doces!

Florbela tinha razão, quando disse: "A vida é sempre a mesma para todos: rede de ilusões e desenganos. O quadro é único, a moldura é que é diferente." Ainda assim, fiquei intrigado, imaginando como seria a prece do ladrão das abóboras ao comê-la com sua família. Poderia ser algo assim:

“Amado Deus, obrigado por me permitir saber e saborear das abóboras do quintal do meu vizinho. Obrigado porque entrei em seu quintal sem ser visto por ninguém. Agradeço também por me permitir ver os três frutos mais belos e transportá-los em segurança para casa. Agora, quero comê-los em paz com a minha família. Obrigado pelo fruto da terra”. Pensando nisto, lembrei-me dos Textos Sagrados que dizem que os primeiros frutos da terra pertencem a IHAWHE. É corbã: oferta ao Senhor. E mais, lá ainda diz que, parte dos frutos na plantação não é para ser colhida, pois pertence aos pobres e aos estrangeiros. Estrangeiros de estranhos. Ladrões aos olhos dos capitalistas? Ai, eu me lembrei imediatamente, dos discípulos de Jesus colhendo espigas no sábado. Jesus disse que Deus é o dono da terra, o Senhor da seara, do sábado e que ele faz frutificar sobre a terra.     

Assim, desse modo, sosseguei a minha alma e orei pelo ladrão. “Na verdade ele só queria matar a sua fome”, pesei eu. É claro que ele não entende que do lado de cá do muro alguém estava enamorando-se das abóboras; mas que importa? A fome é assim, ou leva alguém a matar ou mata alguém que não leva. Ah! Doce Florbela! Ainda escuto-a a dizer: "Se penetrássemos o sentido da vida seríamos menos miseráveis."

Teria eu dado aqueles frutos ao ladrão caso pedisse? “Não se rompe impunemente com o passado”, dizia o meu Professor Dr. Merval Rosa. A minha aboboreira continuaria ali, dando frutos bons. Dá-os tanto que não dou conta de apreciá-los doces ou no pé. A gente aprende com as perdas. A vida acaba sendo uma escola de sabedoria e lições de amor. O fruto levado não era meu. Eram as primícias da terra, portanto do Senhor. Mas o Senhor não come abóboras. Caim que o diga! Quem as come são os homens. O Senhor se alimenta da gratidão, da gratuidade e do amor ao próximo. Isso lhe é perfume suave às narinas. Sacrifício de sangue e, portanto, de vida.

Tê-lo-ia eu roubado caso não o desse a quem de direito. Eu teria me tornado ladrão na minha própria posse, segundo o Mandamento. Como o amor, as abóboras continuarão nascendo, crescendo, vivendo e morrendo. Doces como amoras, belas como as manhãs de inverno e encantadoras como o olhar de quem gratuitamente segue por ai, dando o seu fruto, nas trilhas, como meninos que brincam andando sobre trilhos. William Shakespeare entendeu o mistério da vida quando disse: "Sofremos muito com o pouco que nos falta e gozamos pouco o muito que temos." Abóboras roubadas são as abóboras esquecidas no pé.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Um Rio Em Mim!



Daqui da montanha avisto um rio.
Espelho d’água cuja beleza há de ser degustada.
...
Os olhos devoram a beleza e a fugacidade das coisas.
O amor é veloz, como velozes são as aves que pousam na cerca.
Assentam-se,
Escutam,
Se escutam.
Olham,
E logo se vão.

Uma brisa leve toca o meu rosto.
O meu corpo cansado quer sossego,
Resquícios das guerras de ontem.
Um mar de silêncio inunda a minha alma.

De longe o rio é beleza para os olhos.
Dentro dele, o meu corpo refrigera-se e teme o ignoto.
Há uma distância entre o rio que os olhos vêm,
E aquele que ameaça todo o corpo em suas profundezas.
Há duas belezas para um só rio, abismos para um só corpo:
Há a que petrifica o olhar com sua sublimidade,
E há a que ameaça o corpo, enquanto alegra-o.

Rios profundos são rios perigosos.
Rios rasos são apenas rios.
A alma quer sossego quer profundidade.
A alma quer tocar o rio com o olhar,
Quer mergulhar em suas águas cor de ferro, das pedras das montanhas.

O que há de mais belo em mim, é filete de um ribeiro de amor que corre das montanhas.
Minha alma é corredeira que dá nas cachoeiras do tempo.
Minha alma é riacho doce.
Esperança minha em suavidade.
Meus sonhos são correntezas que sangram saudades.
Daqui do alto da montanha adejo como uma ave que segue a direção do vento.
Silêncio!
Apenas silêncio e mais nada!

Minhas Estações!

A suavidade do amor me acalma.

Tenra luz que rompe a escuridão.

Poesia dita ao silêncio...

Debussy decantando os sonhos mais doces.

Recantos meus de horas de esperas.

Melodia em verso, em força, em prosa.

Canto de aves que rumam para a linha do horizonte,
Em fins de tardes, em forma de V se vão.
Minha alma migra para longe,

Não sei para onde...

Apenas vou seguindo e sonhando.

Chegar não é tudo...
Atravessar é preciso, florescer é preciso.

Sinto paz ouvindo Clair de Lune: claridade da lua.

Meu universo é saudade, uma alva e serena luz.

Sinto saudade e na quietude espero invernos e outonos.
Desejo as quatro estações em silêncio,

E o silêncio das quatro estações.

Transcorre-se um ano e a vida viaja como um rio.

Um rio ameno e caudaloso,
Sinusoso como a vida que percorre minhas veias.
Sinto calma por saber que o amor supera o medo.

Quando o Amor É Dor!



          Restam poucos dias para findar o ano de 2011; águas que passando movem moinhos, moinhos meus de ventos idos. E eu hoje, amanheci com o coração sentindo um misto de leveza e embotamento. As mãos querendo escrever o que a razão me nega dizer e fazer. Quero escrever sobre algo que até o momento não sei expressar. Os dedos seguem os instintos, mas a mente não tem nada para se apegar que pareça valer à pena.

Devido à necessidade de expressar-me e por não suportar estar só, em silêncio comigo mesmo. Escrevo para sentir-me acompanhado por mim mesmo, na companhia dos meus muitos eus. Há momentos que somos a melhor companhia para nós mesmos.

Outras vezes, somos apenas fadiga do ego; não nos suportamos. Em meu monólogo-dialógico, eu pensei em falar sobre muitas coisas, mas não vi sentido no que ia dizer. Às vezes os sentidos das coisas se esvaziam e o vazio é a mais pura certeza que possuímos. Foi num ato de pensar e sentir que o Criador fez brotar as coisas. Primeiro o vazio, depois a eclosão dos mundos. Primeiro a não-forma, para depois as formas.

Do nada, tudo se formou. Nesse sentido, a criação é puro sentimento do Deus Eterno. Por isso a beleza em tudo que ele fez. Mesmo a palavra brota do silêncio. O mundo criado é mundo sentido e não apenas pensado. “Porque Deus amou (sentiu) o cosmos de tal maneira...”

O nosso estado de alma, o que sentimos determina o que vamos pensar, dizer ou fazer. Nesse sentido, pensar, dizer, escrever ou fazer é eclosão do sentir. Num cubo, é como me sinto agora. Meu mundo interior está nublado. Acho que sei a razão, mas quem souber morre! Costumo ficar assim quando embaça a minha interioridade.

Não é tão difícil neblinar o meu mundo; basta uma palavra pelo avesso, e uma atitude de incompreensão da pessoa que amo, e pronto. Às vezes me sinto pequeno na alma, quando pessoas tentam me definir sem certezas. Muitas vezes eu sou sensível o bastante para hibernar nas minhas cavernas sombrias. Henry van Dykee, um pastor protestante norte americano que viveu entre 1852 e 1933 traduziu melhor o que sinto agora, ao dizer:

"Eu vou envelhecer, mas nunca perderei o gosto pela vida, porque a última curva da estrada será a melhor”, e ainda: "O tempo é muito lento para os que esperam, muito rápido para os que
têm medo, muito longo para os que sofrem, muito curto para os que se
alegram. Mas para os que amam, o tempo é eterno."

Será que vale a pena tentar entender o mistério da vida? Como entender o outro quando o outro lê em nós o que não escrevemos, ouve o que não dissemos e vê o que fizemos? Sinto-me inútil ante os mistérios do amor. O amor é abismo.

Daqui do meu lugar, insignificâncias minhas são relevos. Sinto-me um Moisés na travessia de mim mesmo. Com pés úmidos, entre abismos, atravesso o mar vermelho de angústia e incompreensão. Respingos do Nilo habitam meu ser anelante.

A esperança de que a paz volte para o seu ninho é o que mais desejo. Rios de sangue e lágrimas lavam minha alma pássaro, e sob sol intenso levam-me para o deserto mais próximo.

Eu acho que Bachelard tinha razão: “Ainda existem almas para as quais o amor é o contato de duas poesias, a fusão de dois devaneios”. Haverá sentido em alguma coisa sem amor? Haverá sentidos? Há sentido para as poesias? Quando amamos o que amamos? Olho ao redor e só vejo areia! Canaã parece estar longe!  

Definição de Mim!



A minha alma é oceano.

Imensidão em mim de amor e alegria.

Recuso-me a ser apenas gota...

De dentro de mim melodias belas...

Do fundo do meu ser um sorriso singelo.

Meu ser é imensidão.

Minha voz e meu violão e o mundo sem fim.

É isso que sou: apenas uma melodia breve.

Vi minha alma descrita por Schumann em seu brevíssimo:

Scenes from Childhood, Op. 15: VII. Träumerei.

A ampulheta do tempo não apagará em mim a ternura.

Sou gênio de uma lamparina de tenra luz.

Sou poesia escrita nas pedras.

Sou saudade de tudo que chama beleza!

De tudo que se chama amor!

Ao Vento!



Uma folha levada pelo vento.

Redemoinho que corre pelas ruas.

Lugar onde a palavra se esconde.

Para onde foram as palavras se o amor apenas amanheceu?

Na quietude, escuto Impromptu de Schubert em B-flat

Maior ao piano, The "Last Romantic".

Enquanto sobrevôo terras longínquas do meu ser.

A música me faz sonhar.

Nas minhas alturas avisto paraísos.

Alguma coisa em mim é miragem.

Oásis meus em desertos de outrora.

Vladimir Horowitz ainda executa o seu Recital de Moscow,

E eu do meu lugar, ainda viajo por ai,

Com a folha ao vento.

Como uma folha sem destino.

Tapete mágico de quem precisa apenas admirar a beleza,

E respirar um pouco.

Sair pelo mundo, musicando as flores, o tempo e cavalgar sobre o vento.

sábado, 24 de dezembro de 2011

CAMINHOS DO CORAÇÃO!

            A sessão matinê estava prestes a começar na cidade de Quixangá e a fila se estendia, serpenteando por algumas quadras até a bilheteria. O nosso lugar na fila não nos assegurava por tão cedo o acesso àquele mundo encantador; mesmo por que, caso isso viesse a acontecer, só seria, pela distância à que estávamos e pela demora, coisa de uma hora após o início do espetáculo, depois da sessão das 17h. Um dos meus amigos, subitamente, havia encontrado uma forma de entrar pela greta de um dos portões que circundavam aquela apoteótica tenda cercada de lonas.


Éramos saltimbancos naquele tempo, pivetes à moda antiga. Não éramos ladrões, trombadinhas ou assassinos, mas apenas pixotes, isso mesmo, pixotes de corpo e alma; contudo, eu confesso que, nem eu nem meus irmãos sabíamos definir essas coisas com a propriedade que o fazemos hoje, sequer nos sabíamos como tais, nem um nem outro, mesmo sendo vistos pelos olhos de outrem como meninos peraltas, delinqüentes ou até como moleques; afinal de contas, éramos “forasteiros” na sociedade onde vivíamos e as poucas moedas que nós trazíamos no bolso, não nos garantiam lugar em nenhum dos acentos daquele mundo maravilhoso.


Nós fomos criados num lar evangélico, de raiz pentecostal, e por isso, marcados por uma tradição rígida, cuja carapaça de um legalismo caudilhesco cego, radical e repressor, protegia nossos corpos débeis e combalidos das areias movediças dos desertos que o pretenso pecado poderia nos causar, fazendo-nos sucumbir, afogados ou soterrados numa cultura vista como diabólica, fruto de uma promíscua relação com uma sociedade paganizada e supostamente sem Deus na qual vivíamos, de modo que, ir àquele lugar, um circo, um simples e belo circo só seria possível de duas maneiras: uma, subversivamente, burlando todas as regras religiosas às quais estávamos confinados, no afã de lograrmos êxito na nossa aventura quixotesca, ou a outra, nós irmos de cabeça erguida, comprando e pegando o ingresso (sabe Deus como) na bilheteria, correndo o risco de, caso fôssemos vistos por alguém que nos conhecesse, nos delatasse à nossa mãe, e com isso, levarmos uma bela surra ao chegar a casa. Optamos pela primeira opção por motivos justos e irrefutáveis.


Nesse tempo, Lêgo, meu primo de primeiro grau, liderava a turma sem maiores problemas e sem repressão alguma, visto que, o mesmo, provinha de um lar menos evangelical, tampouco catolicizado; laico na sua maneira mais profunda de fazer, possuir, ser e ver o mundo. Daí a força de sua índole mais puramente pixotesca que a nossa. Meus irmãos e eu, não éramos puritanos, mas havia caminhos que nossos pés ponderavam e discerniam antes de percorrer, como as drogas, por exemplo, jamais adentramos suas veredas cheias de cardos e espinhos. Éramos todos marginais, digo, marginalizados numa sociedade fatiada por ricos, melhorados, remediados, pobres e miseráveis. Habitávamos num lugar abissal. Existíamos ali entre o nadir e o zênite. Vivíamos pendurados no trapézio que se estendia entre os remediados e os pobres. Ainda hoje eu não sei como, entretanto, éramos felizes, mesmo assim. O irônico da felicidade é que esta não se assenta somente à mesa dos nobres, contraditória e paradoxalmente, banqueteia-se na mesa e nas casas dos pobres.


         A fila caminhava lentamente. O Sol já dava sinais de que ia para o ocaso, sua sublime morada para as bandas orientais do mundo. Desorientados, nós perseguíamos os nossos sonhos. Para mim, aquilo era mais que um sonho, uma vez que os meus olhos nunca tinham visto de tão perto o que estava guardado a sete capas, por trás daquelas estacas e cordas cobertas por aquelas lonas coloridas. Sagaz, veloz, quase invisível e de longe, Lêgo sinalizou-nos que havia encontrado um meio de entrar sem que ninguém nos percebesse. Depressa eu e meus irmãos saímos do lugar que estávamos na fila e pusemo-nos a segui-lo. A única dificuldade, a partir daquele instante, era que nós tínhamos que passar esgueirando-nos pelas grades, entre as jaulas de leões, tigres, gorilas e leopardos. Caminho de ida que escondia mistérios e ameaças plurais. Eu confesso que tive muito medo. O meu olhar infantil não estava afeito àqueles seres tão belos e ao mesmo tempo, tão ameaçadores vistos de tão perto. Em seguida, teríamos que passar por baixo da lona que dava para uma pequena arquibancada de madeira e, caso não fôssemos notados, procuraríamos um lugar no meio da multidão para melhor avistarmos o espetáculo.


         Já não me lembro muito bem do nome daquele circo, eu sequer sabia ler com precisão àquelas palavras garrafais gaguejando eu li num cartaz: MAGNÍFICOS, no entanto, a despeito da minha leitura quebradiça, o que mais me impressionou e eu ainda me lembro é que aquela foi a primeira vez que os meus olhos viram tais animais tão raros e tão de perto de uma África imaginária e tão distante. Os elefantes! As girafas! Tudo era muito esplendoroso e mágico. Tudo aquilo me causava espanto! Era tudo muito grande e muito belo ao mesmo tempo! A adrenalina me fazia ver as coisas meio que afogueadas e com certo brilho. Lucidez de um olhar que observava tudo do fundo escuro da ignorância.


Ofegante, eu seguia ávido, meio ébrio na emoção para perto do palco. Ali, eu já não me importava com mais nada que não fosse à ruidosa grandeza daquele lugar. Os palhaços! Os mágicos! Os cães amestrados! As minhas mãos suavam e meus olhos esbugalhados vibravam ao ver cada detalhe, cada lance. No picadeiro, aquele homem de fraque preto e vermelho dizia: “respeitável público. Senhoras e senhores...”.

Havia certo torpor em meus sentimentos e eu flutuava; minha alma bailava e se estremecia ao som de cada cena. Os aplausos! Os gritos! Assobios! Eu via aos meus irmãos de longe, boquiabertos, de pé, entre a bancada, entre as cordas e tão assustados, digo, tão abismados quanto eu. Tudo aquilo era demais para nós! A mulher sobre o elefante! O domador na jaula com os leões! Os malabaristas! Entretanto, duas coisas me prenderam mais a atenção e, parado ali, minhas entranhas quase me saem pela boca ao vê-las: os macacos saltadores e os trapezistas. Tudo era muito lindo! Eu chorava e sorria a uma só vez. O riso se avizinha às lágrimas quando o corpo depara-se com a beleza no amor. O corpo se perde, a alma confunde-se e a face chora e ri. A perfeição reuniu em mim os seus exércitos e desfilou pela avenida do meu olhar adolescente. Parado ali, meu adolescer se fez flor, se fez amor. Os meus olhos nunca tocaram tanto amor, ternura, magia e encantos especiais como aqueles.


Extasiado ante tanto esplendor, eu já não me preocupava com mais nada que pudesse me sobrevir de negativo naquele paraíso de cordas, estacas, lonas, bichos e pessoas encantadoras. Era um sonho. Tudo era mesmo um sonho! De onde eu vinha não havia tanta beleza para alimentar os olhos e aninhar a alma de um menino sonhador. As águas roubadas correriam como um rio na minha alma. Águas barrentas, mas eivadas de flagrante beleza, cheias graça, leveza e de um mundo sem fim de desejos no coração.


Ali, entre as cordas eu desejei ganhar o mundo. Sonhos de meninos que se sabem capitães de areias:  viajar, sair por ai levando alegria, paz e fazendo as pessoas felizes. Todavia, eu era só um menino, pendurado numa corda bamba entre abismos. Às vezes, a vida é para nós uma corda bamba entre abismos, nas escarpas do tempo e dos desejos. Eu sentia cá em baixo, do trapézio real de uma vida sem cor, no qual eu projetava o meu corpo, o corpo dos meus sonhos, sentindo aqui, do chão, a mesma fissura emocional que sentem os trapezistas quando estão lá em cima, nos trapézios dos circos. Calafrios meus, sentidos na corda bamba de uma existência pixote. Meninos de rua são assim, ou morrem de desejo, ou matam os desejos, realizando-os ou não.


A aventura findou repentinamente, quando eu, de súbito avistei os meus irmãos e meu primo sendo todos, afugentados dali, daquele mundo maravilhoso. Como “Adão e Eva pós-modernos”, fomos expulsos do paraíso. Tudo no mundo tem um preço, mesmo a felicidade. O mundo capitalista é excludente. Fomos excluídos do mundo da felicidade cara. A nossa felicidade, tínhamos que manufaturá-la, fabricá-la a agulha e linha e assim, desse modo, alinhavávamos os nossos desejos nos retalhos da vida, entre os sonhos e a realidade. O capitalismo é senhor que pune sem piedade. Os capatazes do circo serviam ao sistema capitalista e este (o sistema), em matéria de castração, banimento e exclusão é especialista, selvagem e homérico. Você já viu a face dele por ai? Já sentiu os seus açoites? No circo ou fora dele? Essa vida é um circo onde ratos e homens giram a roda. Onde a beleza camufla a ferocidade e o ódio do mundo.  Hoje eu me lembro com saudade daqueles dias!


Na fuga, o caminho que tomei me levou para um rumo diferente do que tomaram os meus irmãos. Segui para um corredor estreito e no meio do caminho me perdi entre caixas, jaulas e roupas. Foi ai que algo muito especial me aconteceu. Correndo desesperado dos meus perseguidores, eu fui salvo por um dos palhaços do circo. Era um senhor de idade, podia-se ver por trás das máscaras e do chapéu as suas cãs embranquecidas. Ao ver a minha aflição, olhou-me como quem avistava uma ave presa num alçapão e, amistosamente, com um olhar, me indicou um caminho secreto. Um caminho que só ele conhecia. Oculto aos meus olhos. Um caminho que hoje nomeio como sendo um caminho do coração. Mostrou-me uma saída perto da jaula dos elefantes. Eu jamais esquecerei aquele olhar. Aquele palhaço sorriu para mim e nada me disse, apenas assinalou com um olhar e um gesto das mãos, como se disse: “seja livre pequena avezinha”.


Lembro-me do seu chapéu preto, da sua roupa colorida, da sua boca avermelhada, a tinta branca ainda fresca no seu rosto; lembro-me do seu nariz com uma bola vermelha e de seu olhar simples, terno e indulgente. Há olhares e gestos que nos marcam mais que discursos e os arroubos das promessas dos palcos da vida. Eu jamais esquecerei o olhar que me mostrou o caminho, um caminho do coração.  Eu não esquecerei o dia que, pela primeira vez da minha vida, eu, fortuitamente, encontrei um palhaço de verdade, num circo de verdade. Ali eu descobri que os palhaços são homens sensíveis, possuem alma. O capitalismo não matou de todo a beleza.  


Era noite, o Sol já se havia posto, quando saímos esbaforidos, suados e risonhos daquele lugar magnífico. Eu era apenas uma criança leucêmica e faminta à procura de pão, paz, alegria, inclusão e felicidade. A minha mãe jamais soube dessa nossa peripécia. Segredamos isso por muitos anos. Somente agora, aqui no Bravo, sertão da Bahia, visitando a igreja de um amigo, o Magno Souza, para quem eu devoto o meu afeto. Depois de avistar resquícios de um velho circo na rua, caminhando ao lado das minhas filhas, é que minhas recordações me trouxeram esses pensamentos que hibernaram por muitos anos em meu ser. Eu aprendi que pensamentos possuem asas. Pensamentos com asas? Sim! Esses que como aves, migram de longe, voam das cavernas e das montanhas de nós mesmos, riscam os céus de nossos sonhos como borboletas azuis voando em bandos; aves com sementes no bico, para polinizar a saudade na estrada da esperança, nos caminhos do coração.


Aqui do meu lugar, eu sou só saudade, sou só sorriso e em mim, soçobram os meus desencantos pela vida ao relembrar-me o quanto a minha infância foi amável, colorida e cheia de doces aventuras. A criança em mim sente saudade, enquanto o Sol se põe. O adulto em mim fica em silêncio, ante o espelho, enquanto a noite gesta silente mais um novo amanhecer.





Em algum lugar entre as montanhas, as flores e um pequeno Sol, de saudades minhas de fim de tardes idos.





“Dedico este texto a todas as crianças, meninos e meninas excluídos, pelo mundo afora, que sonham um dia viver a verdadeira e mais profunda felicidade”.


Como seria o mundo sem o capitalismo selvagem?





Feliz Natal e um Próspero Ano Novo!

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Quando A Escola É Ponte!


Eu sempre amei a escola. Estudar não era o meu forte, mas eu amava o espaço lúdico, a comunhão das boas amizades e das matérias que me apeteciam naquele prédio pintado de azul e branco. A pasta azul, verde ou vermelha na mão. Livros, cadernos, lápis e apetrechos escolares. As leituras dos romances que me faziam viajar pelo mundo inteiro. A fila da merenda. Mingau, arroz doce, sopas, leite, chocolate quente, pão ou biscoitos.  

Quando criança eu ia de chinelo para a escola. Eu imaginava que a escola era um lugar onde a gente brincava, comia a merenda e aprendia sobre o mundo. Todos deviam ir de tênis, mas a minha conga azul desgastou-se em dois anos. Eu fui barrado no portão de uma escola pública. O escudo da escola pendurado no peito formava o bolso da blusa branca, fardamento escolar com a gola puída, não me fizeram parar de buscar aquele espaço do saber como porta de esperança. Lembrei-me de tudo isso, após ver uma foto minha, eu com onze anos de idade.

O tempo me impôs mudanças. Mas não fui apenas eu quem mudou, a escola mudou. As pessoas mudaram. O mundo mudou. Roubaram a merenda da escola e o saber anda perdido por ai, no mundo do não-saber. Dizem que foi a prefeitura. Ouço dizer que a escola virou a secretaria do crime. Deve ser rumores de inimigos das brincadeiras. Professores morrem, por alunos armados. Já não se canta mais em fila o Hino Nacional.

A calça azul era de um tecido simples e fino. Fino de finura e não de fineza. Os meus pais não iam às reuniões da escola, eles não podiam ir. A gente aprendia de tudo. Eu gostava mais de estudar história. Sempre odiei a matemática. Amava estudar ciência. Meninos com fome não guardam números nem sabem fazer cálculos. A sabatina era minha maior angústia. A professora com uma palmatória na mão, as crianças em fila e os números longe da minha cabeça. Foi assim que ajoelhei sobre milho e tive as mãos sofridas de tanto bolos.

A meu ver, em minha particular opinião, havia certas matérias que eram postas como mata-burro na estrada. Estavam ali para frear a vida e a caminhada de alguns. Garotos pobres estudando inglês, espanhol, provas escritas de educação física e outras. Amo a Escola da Ponte. Eu queria voltar a ser criança para estudar nela. Por que será que os educadores se vendem à política e os políticos querem barrar a muitos na carreira escolar? Por que será que não se pode entrar direto para a Universidade?  

Para muitos garotos pobres a escola e o fim da trilha. Encerra ali uma história que nem bem começou. Quando a escola não é mais um caminho, ela se transforma em abismo. Escolas abismos são aquelas que não têm pontes. Elas já não integram as crianças à sociedade e desta ao futuro. Sepultaram a escola pública e as que vivem servem de sepulcro de sonhos infantis. Nossos jovens estão morrendo, sem chance algum de saírem da insignificância. Já não há pontes para um futuro promissor.  Pierre Bourdieu afirmava que “Só uma política inspirada pela preocupação de atrair e de promover os melhores, esses homens e mulheres de qualidade que todos os sistemas de educação sempre celebraram, poderá fazer do ofício de educar a juventude o que ele deveria ser: o primeiro de todos os ofícios”.

Ainda lembro-me da diretora da escola. Uma autoridade. Ela tinha um nome bonito: Iolanda. Como também, eu não me esqueço da professora séria, mas dedicada que nos fazia mudar o comportamento, assim que apontava no portão da escola: Carlisdônia. Eram ícones de um amor que dava a escola um sentido materno acolhedor. Não me tornei bandido porque tomei bolo na escola.

Diga-se de passagem, aqueles que fugiram dessa realidade é que se enveredaram pelos caminhos das drogas e do crime. Naquele tempo, o mal jazia fora dos muros da escola, hoje, baniu o bem da escola e em alguns lugares rege a escola a ferro e fogo. Ainda me lembro das filas enormes de jovens na FEPASA, SENAI, nas Escolas Técnicas pelo Brasil a fora em busca de uma profissão. Hoje o crime organizado forma os seus exércitos. A escola era ponte para o futuro e para a realização dos sonhos.

Hoje, a escola pública já não vale nada. É apenas ponte do nada para lugar nenhum, sobretudo se estiver na zona rural. Uma escola que não é ponte para um futuro de esperança já não é mais uma escola. Não queremos uma escola que seja ponte para o crime, os presídios, para os hospitais ou para os cemitérios. Tenho duas filhas na escola. Às vezes me pergunto o que estão fazendo lá. E creio que esta angústia não é só minha. Muitos pais se perguntam a mesma coisa. Paulo Freire tinha razão: “Não basta saber ler que Eva viu a uva. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.”

Deixem os nossos filhos serem livres. Eles querem aprender. Queremos um Brasil melhor para eles. Uma escola livre. Uma Escola da Ponte que seja ponte para uma educação eficaz. Queremos uma escola que inspire, entusiasme e gerem em nossos filhos a alegria de viverem na escola para aprenderem si mesmas, sobre a vida, sobre o mundo e sobre as coisas, do contrário a escola continuará sendo um fardo, um caminho para a morte do saber. Em seu texto, Os Flamboyants, Rubem Alves diz: “E, como disse Walt Whitmann, "quem anda duzentos metros sem vontade, anda seguindo o próprio funeral, vestindo a própria mortalha".
   

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Bentinho, O Menino E O Vento!




Era inverno e seu corpo lânguido, percorria absorto pelas ruas estreitas da velha Quixangá. A alma entorpecida, dor de quem da vida esquecera o sabor, seguia firme rumo ao ponto mais alto da estação. Parado ali, entre abismos, em sua face corria um rio de lágrimas. Incertezas de um ser que se sabia ferido. Quando a alma se sabe grandiosa, recusa a sofreguidão. Nessas horas, a beleza do mundo é vertida em silêncio e o fim do túnel é caminho para quem deseja a luz do outro lado do amor. Bentinho não queria outra coisa, além de ser feliz. O problema é que, tem hora que a felicidade é trem que atrasa a chegada e, a partida é a única opção para quem anseia chegar à margem do rio da alegria.
Seus sonhos em ruínas, seus muros afetivos derruídos, as portas do coração queimadas a fogo, restou-lhe a insignificância como meio de vida. Sitiado em suas próprias angústias, seguiu para aquele lugar para por fim ao vazio que lhe corroia a alma. Os carros passavam sob os seus pés naquele viaduto de alta rotatividade. Assentado no guardrail seu olhar seguia as nuvens e, volta meia, acompanhava os carros que passavam velozes. Acima dos flamboyants, dos ipês floridos e das acácias, sua aflição o fazia desistir da vida, do mundo e das coisas. Vazio dos seus sonhos, uma oração sibilante e seu ser partido em pedaços, o jovem Bentinho esperava o momento exato para dizer adeus ao mundo à sua volta. O vão que escolhera era o mais alto, pois dali não haveria erro.
Na sua mente se dava uma batalha renhida e inexpugnável. Quando a solidão é o único pão possível para alimentar a espera. Como abandonar o pôr-do-sol, o luar, a primavera, as cachoeiras, a verde campina e a beleza do amanhecer? Como desprezar o inverno, as chuvas de verão, o vicejar das flores e a brisa do mar? De que maneira deixar para trás suas lembranças mais doces, de quando menino, andando sobre trilhos, sob os sóis de outono, os tons amarelados e o cair das folhas? O que Bentinho queria era a vida! Mas como? Onde? Qual vida? Há momentos que o que resta na alma é a saudade de inesquecíveis dias, vividos entre o céu, a terra e o mar.
Era com Deus que bentinho conversava sobre a ponte. O menino rejeitava uma vida sem amor, vazia de quadros de amores ternos pintados na parede da lembrança. Para que viver, se fazer o que se ama já não é possível? – pensava ele. Foi no abismo da solidão que o Príncipe do amor lhe deu a mão. Sorriu-lhe o amor no asfalto. A vida escondida na fenda do tempo; eclodiu-lhe altaneira e viçosa.
Um caminhão que por ali passou pela divina providência, trazia em sua inscrição a palavra: CONFIANÇA. Palavra que lhe saiu ao encontro na forma de grito de amor e esperança. Era tudo que Bentinho precisava ouvir. Quando o Amor fala, sua voz é irresistível e inconteste. Um vento soprou como voz que vem do coração. Aturdido, o menino olhou para os lados e a única coisa que viu, foi o seu Deus pegando carona num caminhãozinho, passando por ali, para dizer-lhe da vida, do amor e do mundo. Dizer-lhe que o sonho não havia acabado e que ainda havia muito por fazer.
Assentando-se no batente, tomado por um profundo consolo, por causa da resposta que lhe sobreveio de súbito, do seu Deus, amigo leal e real o menino chorava e ria. Já não chorava de dor, mas pela delícia de um lindo pôr-do-sol num fim de tarde de inverno, coisa rara de se ver, presente de um Pai carinhoso que sabe guardar os seus filhos.
Assim, tomado por um novo sentimento, o menino seguiu para a sua casa; memórias suas de antigas promessas. Enquanto o menino seguia a pé para casa, Deus seguia para a sua casa eterna montado em seus cavalos de fogo. Bentinho guardou segredos de amor com o seu Deus. Aqueles que só se obtém entre abismos. Doçuras provadas como as que provam as aves nos penhascos das montanhas.
Foram-se tardes e manhãs, e viu Deus que era amor. Bentinho viu o quanto seu Deus era bom!

Meu Pé De Flamboyant Vermelho!

 

Os flamboyants vermelhos vicejaram na estrada,
Perto da cerca o olhar se fez ternura e canção.
A palavra claudicou sombranceira, vestindo a mudez.
...
A alma quer do mundo o que só o mundo pode dar.
O verde dos campos, o azul do céu, as flores e o douro do sol.
Eu quero o fim do mundo e o sem-fim, no fim da estação.
Em meu mundo, minha alma é tronco de árvore cortada.
Raiz que se refaz no chão, junto às águas.
Chuvas minhas de invernos findos.
Há momentos em que o silêncio é a única palavra que vale a pena,
E traduz a espera.
Minha alma anela, enquanto os flamboyants vemelhos esperam o pôr-do-sol.
O pôr-do-sol espera o olhar que anseia o luar.
Os sóis são filhos da noite e eu, sou estrela que viaja por ai.
O meu olhar transpõe a cerca,
E o flamboyant vermelho me assiste impávido, assitido.
O olhar é a única janela que nos une entre flor e fruto.
E para nós o mundo é espera...


sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Um Dia DA Caça, Outro Do Caçador.



Hoje eu acordei lembrando-me de dias belos com lições duras que marcaram a minha vida. Há dias que a gente amanhece com a sensação de quem navega no túnel do tempo. Quem não se lembra da série realizada por Irwin Allen, “The Time Tunnel – O Túnel do Tempo”, estrelada por Robert Collbert: Doug Phillips e por James Darren: Tony Newman, filme no qual, dois cientistas viajavam no tempo, para o passado, caindo no meio das mais controversas situações? Pois é, foi assim que acordei, com essa sensação de flutuar e divagar no tempo, que fui parar na cidade de Cerra Preta, no povoado de Morro do Curral, no interior da Bahia, nas férias de 1979.

O lugar era paradisíaco e minha alma estava afeita àquelas montanhas. O meu ser era arte naquela moldura sempre viva. Ao lado do meu amigo Galego, nome dado por causa da sua tez meio amarela, sarará, avermelhada; naquele tempo, uma cor indefinível. Éramos coetâneos; ele era o meu melhor amigo de infância; crescemos juntos. Eu o defendia a unhas e dentes, pois o tinha, e ainda tenho como irmão do coração. Estar no meio dos seus familiares, era como possuir, eu mesmo, uma família grande e feliz.

Aquela ambiência bucólica ajudou a perfilar a minha alma poética e nostálgica. Eles possuíam nomes de pessoas comuns; a forma de chamá-los distanciava-se muito da forma da escrita de seus nomes: “Vardemar, Tôin, Maro, Jão, Kitute, Elza, Iracy e Magô”. Eles eram todos parentes do galeguinho, irmão meu nascido em outro ventre. Todavia, naquela família a matriarca era Dona Martila. Senhora alta, de olhos claros, espirituosa de dentes fortes. Eu nunca soube o seu nome de batismo exatamente, mas que importa? Em meu coração ela será sempre Martila. O imaginário não quer ser remexido, visto que as velhas cabanas, as velhas ruas, casas e abrigos precisam estar ai onde e como sempre foram; para existirem como lembranças no lugar da saudade num infinito reviver ante o devir do tempo, da estrada e do vento.

Há coisas que são irremovíveis na nossa alma. Permita-me plagiar o ex-ministro do Trabalho, Rogério Magri, figura excêntrica do governo Collor, usando sua inesquecível expressão a qual, acho que cai muito bem aqui e, melhor explica meu sentimento. Há coisas que são imexíveis na nossa alma sonhadora. Não carecem retoques; elas devem estar como sempre foram. Eternizadas em nós, no jeito, no nome, no tipo, na cor, no tom, na fragrância, no estilo e nos defeitos, porque a acepção delas se deu na forma que elas se apresentaram, como sempre foram, são e precisarão ser.

Naqueles dias saímos para uma caçada, fazendas morro-acima. Eu nunca houvera me afastado tanto do povoado. Com espingarda na mão, bodoques, a alma cheia de encantos e um punhado de farofa no saco, fomos nós para a mais doce aventura. Caçamos coelhos, codornizes e nambus. Eu mal sabia distinguir a mão direita da esquerda, tampouco a diferença entre uma perdiz e uma galinha d’angola. Atrás de perdiz, me perdi no meu mundo de giz e cera.

Metido mata à dentro, sobre as alturas dos montes, a farofa era nosso único meio de subsistência, regado por uma moringa cheia de água fresca. Nessa tão encantadora caçada eu não imaginava os perigos que rondavam a minha pobre e desavisada alma. Fortuitamente, eu fui parar inadvertidamente, no meio de uma roça de cansanção, conhecida também como urtiga-brava, cheia de veneno de oxalato, nem sei que diabo é isso, mas sei que dói muito e uma dor horrível. E para completar a desdita, estava pendurado nas suas folhagens um enxame de exu, não o lendário caboclo do candomblé, mas o vulgarmente chamado de marimbondo-de-bunda-amarela, que se me acometeu ruidosa, furiosa e incansavelmente, devia ter parentesco com o outro. Vardemar correu esbaforido para longe; Galego gritava desesperado à distância: “Corre negão! Negão, corre....!”, mas enquanto eu tentava escapar das vespas endiabradas, as urtigas me devoravam encapetadamente. Eu vivi o meu “inferno de Danti”. Eu sei o que é tomar uma surra de cansanção, literalmente.

A aventura da caçada transformou-se em desespero. Inchado, dolorido, prestes a morrer de dor das picadas que ardiam por todo lado no meu corpo, saí alucinado, correndo montanha abaixo. Ao chegar a casa, ao invés de me ajudarem, levando-me às pressas ao pronto socorro mais próximo, o qual distava coisa de algumas léguas do lugar onde eu estava, decidiram passar uma pomada velha e gordurosa, chamada bálsamo benque e esta continha uma mistura de salicilato de metila, cânfora, mentol, essência de terebintina, álcool etílico e propelente. Aquilo ardia em mim como pimenta arde nos lábios ou nos olhos. O caçador foi caçado. Um enxame de enxu me abateu. Assim eu aprendi, que “há dias da caça e outros do caçador”. Paradoxalmente, aquele era o dia da caça caçar o caçador. Eu fui caçado por vespas-de-bunda-amarela e urtigas-bravas ao insólito e impiedoso Sol do sertão.
Desmaiado, adormeci vencido pela dor e no dia seguinte, ainda superando o inchaço, voltei para casa, à casa da minha mãe. É para onde a gente volta depois das tragédias e amarguras da vida. A vida pelo mundo vence o guerreiro, mas não demora, o guerreiro sai novamente, após sarar suas feridas, para viver a mais bela vida pelo mundo. O que temerá nesta vida quem já apanhou até de marimbondos-de-bunda-amarela no meio da urtiga-brava? Moisés ouviu Deus numa sarça e eu, nesse deserto cansanção, saudade e vespas enfurecidas. Lembre-se, às vezes, voltar para casa é a melhor maneira de sarar as feridas do corpo e da alma.