Ao chegar de viagem, das minhas muitas andanças à casa da minha sogra, eu notei que havia certa ansiedade, seguida de queixumes ininteligíveis pelos corredores. Daí, dei-me a observar a razão de tamanha inquietação daquela sexagenária e bondosa senhora. “Esses ratos miseráveis! Deve ter morrido algum por aqui, por isso esse mau cheiro horrível”.
Cuidadosa e preocupada com o bem estar aromático do seu lar desfeito por um odorífero poder negativo que dava à sua casa um olor selvagem de carcaça esquecida, esta, queria explicar e justificar a razão de ser da fedentina que entorpecia os pulmões dos moradores, havia alguns dias, e de quebra, convidava-me sutilmente a cheirar com ela, a fim de que, como um cão, farejando, viesse a encontrar o local exato onde supostamente estaria o cadáver da rataria.
Depois de mergulhar de novo nos espaços antes já sondados por ela, a qual, dizia ter varrido todos os quadrantes da casa, nada achando; de súbito e, por intuição, eu disse-lhe com certa convicção, quase acurada, fruto de caçadas de ossadas antigas, visto minhas narinas estarem aguçadas e afeitas aos odores do mundo. Então, eu lhe apontei novas possibilidades, espaços não varridos, caminhos não percorridos por ela, nem pelos cheiradores residentes que o fizera anteriormente.
_ Seja lá o que for que cheire mal, está morto e é grande! O problema não está em baixo nem dentro da casa, mas em cima dela – eu disse isso, evadindo-me daquela asquerosa ofensa nasal, à qual eles já amargavam entre almoços e jantares. O engraçado é que eles haviam pensando em tudo, menos em olhar para cima. Fernando Sabino tinha razão: “O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis”.
Algumas horas depois, eu acordei com o vozeio de homens no telhado. A minha sogra havia providenciado uma comissão provisória de inquérito para gatos e ratos que pudesse observar os seguintes procedimentos: indagar da vizinhança, cheirar o miserável odor de putrefação que perfumava de morte a casa antes primaveril, verificar as possibilidades internas e externas de sinais fúnebres da bicharada, rastros de gatos assassinos e ratos fujões, superiores e inferiores e, finalmente, encontrar a carniça, fosse de um rato, de um gato ou de qualquer outro bicho que estivesse instalado em silêncio gritante em seu óbito, por ali.
Para a surpresa de todos, não era um rato. Era um gato. Os felinos têm hábitos noturnos e vivem nos telhados onde assumem sua malignidade. Quanto mais alto é o telhado, tanto mais os gatos se satanizam.
Aquele não era um problema causado pelos ratos, os quais estavam sendo culpabilizados ao longo de uma semana. Era um problema dos malditos gatos. Mansos de dia, diabólicos na calada da noite. O gatuno estava lá – morto, inchado e fétido. Morrera farto de comida, mas comida envenenada. Morreu em sua fartura solitária. É que os outros gatos, seus amigos, o abandonaram quando a coisa ficou preta. Fiquei perplexo ao perceber uma sutil relação entre os eventos que se deram em Quixangá, a cidade em questão, e os recentes eventos dos ministros politicamente mortos do governo da primeira dama, Dilma Rousseff.
Em Brasília, bem como no Brasil, em geral, casa onde moramos, os odores malignos da corrupção são tão comuns e conhecidos, que já nem sentimos sua asquerosidade, já não nos incomodam. Por lá, Senado, Congresso e Câmaras, alguns sequer notam a fedentina, devido ao comprometimento das narinas morais à que estão acostumados, digo, aos hábitos dos políticos que chafurdam na lama do poder. Outros, mais inescrupulosos, dizem que, “culpados são os ratos!”, para referirem-se ao povo que votara na “súcia vigente que saqueia os cofres públicos”, para citar a honestíssima Eloísa Helena.
Fingindo não saberem onde estão os restos mortais dos últimos vilões e aqueles que mesmo vivos gatunam entre muros, a Comissão de Ética varre os espaços varridos, onde a rataria inocente padece por causa de gatos que agem na calada da noite. Agem como gatos, deixam pegadas de gatos fortes e poderosos, mas culpados mesmos são os ratos, inferiores na cadeia alimentar.
Alguns com bravatas fingem inocência felina ao ponto de declararem amor, roçando-se aos pés do dono da casa. Próprio dos gatos. Mórbida desfaçatez de felinos ladrões. Os gatos já nem temem mais as balas de revólveres, tampouco à justiça divina. O fato é que, mesmo cheirando mal, os bichanos se lambem; se cheiram; se suportam e culpam os ratos de suas desventuras. Que morram os ratos!
Os gatos são traiçoeiros, mansos e delicados, mas o são também, carnívoros, covardes, vorazes e como os ratos, também são ladrões. Pobres dos ratos! Eu presumo que os gatos perseguem os ratos porque querem roubar sozinhos. Neste país, gatunar é uma arte. Eles não podem eliminá-los de vez, do contrário, como engordariam? Como fariam exercícios de caçadas? A quem culpariam? Pobres ratos! Roubam tão pouco se comparados aos famigerados gatos, especialistas em fingimentos. Estes, os ratos, não têm paz, nem quando gatos fétidos, gordos e fartos aparecem mortos pela boca sobre a cumeeira da casa, como morrem os peixes, estes que, pouco tem a ver com essa história sobre gatos e ratos. No caso do gato em questão, morto por um peixe com sicuta.
Mahathma Gandhi disse uma vez: “Uma coisa lançou profundas raízes em mim: a convicção de que a moral é o fundamento das coisas; e a verdade, a substância de qualquer moral. A verdade tornou-se meu único objetivo. Ganhou importância a cada dia. E também, a minha definição dela se foi constantemente, ampliando”. Esse é um discurso que não cabe aos gatos nem aos ratos, mas aos homens de grandeza.
Vivemos num mundo de pessoas honestas, gatos, ratos e peixes envenenados. A questão é sabermos o que somos nesse inferno político-social. Ratos e gatos povoam as ruas, os tubos, becos, esgotos, sumidouros e vivem de dia e de noite no solo e telhados das cidades numa insólita caçada. Caminham por baixo, por dentro, por fora e sobre as casas, os templos, os mercados, as lojas, as empresas, as indústrias, as prefeituras, os prédios do governo, da justiça, nas sedes de partidos políticos, nas ONGs, nos grêmios, nos clubes, nas favelas, nas escolas. Há ratos e gatos para dar e vender por todos os lados.
Há ratos fardados, outros engaiolados. Há ratos que rezam e rasgam o Livro; gatos que oram e devoram os peixes nos aquários coloridos; outros há que cantam com bandeiras de arco-íris, são poliglotas e até usam jalecos brancos, uns na frente das câmeras outros por trás. Gatos e ratos civilizados, de terno, gravatas e risca de giz. Eles se multiplicam. Por toda a terra, eles se consomem numa batalha internacional e multicultural. Quando os ratos morrem, os gatos comem-nos e higienizam a cidade, mas quando os gatunos morrem, seus cadáveres ficam expostos ao sol e ao tempo, decomposição lenta e ruidosa. Os ratos sequer podem provar de suas gorduras. Que rato se daria a ao ato insano de devorar o seu visceral predador? Os homens que enterrem seus gatos!
Daqui da minha perplexidade, ainda me pergunto, quem cuidará de limpar a sujeira fétida dos últimos gatos e ratos mortos, encontrados nos telhados de Brasília e noticiados pelos jornais, revistas, rádios e televisão? Se alguém souber a resposta, por favor, me avise, é que aqui em baixo, já não suportamos mais o fedor da carniça.
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