sábado, 24 de dezembro de 2011

CAMINHOS DO CORAÇÃO!

            A sessão matinê estava prestes a começar na cidade de Quixangá e a fila se estendia, serpenteando por algumas quadras até a bilheteria. O nosso lugar na fila não nos assegurava por tão cedo o acesso àquele mundo encantador; mesmo por que, caso isso viesse a acontecer, só seria, pela distância à que estávamos e pela demora, coisa de uma hora após o início do espetáculo, depois da sessão das 17h. Um dos meus amigos, subitamente, havia encontrado uma forma de entrar pela greta de um dos portões que circundavam aquela apoteótica tenda cercada de lonas.


Éramos saltimbancos naquele tempo, pivetes à moda antiga. Não éramos ladrões, trombadinhas ou assassinos, mas apenas pixotes, isso mesmo, pixotes de corpo e alma; contudo, eu confesso que, nem eu nem meus irmãos sabíamos definir essas coisas com a propriedade que o fazemos hoje, sequer nos sabíamos como tais, nem um nem outro, mesmo sendo vistos pelos olhos de outrem como meninos peraltas, delinqüentes ou até como moleques; afinal de contas, éramos “forasteiros” na sociedade onde vivíamos e as poucas moedas que nós trazíamos no bolso, não nos garantiam lugar em nenhum dos acentos daquele mundo maravilhoso.


Nós fomos criados num lar evangélico, de raiz pentecostal, e por isso, marcados por uma tradição rígida, cuja carapaça de um legalismo caudilhesco cego, radical e repressor, protegia nossos corpos débeis e combalidos das areias movediças dos desertos que o pretenso pecado poderia nos causar, fazendo-nos sucumbir, afogados ou soterrados numa cultura vista como diabólica, fruto de uma promíscua relação com uma sociedade paganizada e supostamente sem Deus na qual vivíamos, de modo que, ir àquele lugar, um circo, um simples e belo circo só seria possível de duas maneiras: uma, subversivamente, burlando todas as regras religiosas às quais estávamos confinados, no afã de lograrmos êxito na nossa aventura quixotesca, ou a outra, nós irmos de cabeça erguida, comprando e pegando o ingresso (sabe Deus como) na bilheteria, correndo o risco de, caso fôssemos vistos por alguém que nos conhecesse, nos delatasse à nossa mãe, e com isso, levarmos uma bela surra ao chegar a casa. Optamos pela primeira opção por motivos justos e irrefutáveis.


Nesse tempo, Lêgo, meu primo de primeiro grau, liderava a turma sem maiores problemas e sem repressão alguma, visto que, o mesmo, provinha de um lar menos evangelical, tampouco catolicizado; laico na sua maneira mais profunda de fazer, possuir, ser e ver o mundo. Daí a força de sua índole mais puramente pixotesca que a nossa. Meus irmãos e eu, não éramos puritanos, mas havia caminhos que nossos pés ponderavam e discerniam antes de percorrer, como as drogas, por exemplo, jamais adentramos suas veredas cheias de cardos e espinhos. Éramos todos marginais, digo, marginalizados numa sociedade fatiada por ricos, melhorados, remediados, pobres e miseráveis. Habitávamos num lugar abissal. Existíamos ali entre o nadir e o zênite. Vivíamos pendurados no trapézio que se estendia entre os remediados e os pobres. Ainda hoje eu não sei como, entretanto, éramos felizes, mesmo assim. O irônico da felicidade é que esta não se assenta somente à mesa dos nobres, contraditória e paradoxalmente, banqueteia-se na mesa e nas casas dos pobres.


         A fila caminhava lentamente. O Sol já dava sinais de que ia para o ocaso, sua sublime morada para as bandas orientais do mundo. Desorientados, nós perseguíamos os nossos sonhos. Para mim, aquilo era mais que um sonho, uma vez que os meus olhos nunca tinham visto de tão perto o que estava guardado a sete capas, por trás daquelas estacas e cordas cobertas por aquelas lonas coloridas. Sagaz, veloz, quase invisível e de longe, Lêgo sinalizou-nos que havia encontrado um meio de entrar sem que ninguém nos percebesse. Depressa eu e meus irmãos saímos do lugar que estávamos na fila e pusemo-nos a segui-lo. A única dificuldade, a partir daquele instante, era que nós tínhamos que passar esgueirando-nos pelas grades, entre as jaulas de leões, tigres, gorilas e leopardos. Caminho de ida que escondia mistérios e ameaças plurais. Eu confesso que tive muito medo. O meu olhar infantil não estava afeito àqueles seres tão belos e ao mesmo tempo, tão ameaçadores vistos de tão perto. Em seguida, teríamos que passar por baixo da lona que dava para uma pequena arquibancada de madeira e, caso não fôssemos notados, procuraríamos um lugar no meio da multidão para melhor avistarmos o espetáculo.


         Já não me lembro muito bem do nome daquele circo, eu sequer sabia ler com precisão àquelas palavras garrafais gaguejando eu li num cartaz: MAGNÍFICOS, no entanto, a despeito da minha leitura quebradiça, o que mais me impressionou e eu ainda me lembro é que aquela foi a primeira vez que os meus olhos viram tais animais tão raros e tão de perto de uma África imaginária e tão distante. Os elefantes! As girafas! Tudo era muito esplendoroso e mágico. Tudo aquilo me causava espanto! Era tudo muito grande e muito belo ao mesmo tempo! A adrenalina me fazia ver as coisas meio que afogueadas e com certo brilho. Lucidez de um olhar que observava tudo do fundo escuro da ignorância.


Ofegante, eu seguia ávido, meio ébrio na emoção para perto do palco. Ali, eu já não me importava com mais nada que não fosse à ruidosa grandeza daquele lugar. Os palhaços! Os mágicos! Os cães amestrados! As minhas mãos suavam e meus olhos esbugalhados vibravam ao ver cada detalhe, cada lance. No picadeiro, aquele homem de fraque preto e vermelho dizia: “respeitável público. Senhoras e senhores...”.

Havia certo torpor em meus sentimentos e eu flutuava; minha alma bailava e se estremecia ao som de cada cena. Os aplausos! Os gritos! Assobios! Eu via aos meus irmãos de longe, boquiabertos, de pé, entre a bancada, entre as cordas e tão assustados, digo, tão abismados quanto eu. Tudo aquilo era demais para nós! A mulher sobre o elefante! O domador na jaula com os leões! Os malabaristas! Entretanto, duas coisas me prenderam mais a atenção e, parado ali, minhas entranhas quase me saem pela boca ao vê-las: os macacos saltadores e os trapezistas. Tudo era muito lindo! Eu chorava e sorria a uma só vez. O riso se avizinha às lágrimas quando o corpo depara-se com a beleza no amor. O corpo se perde, a alma confunde-se e a face chora e ri. A perfeição reuniu em mim os seus exércitos e desfilou pela avenida do meu olhar adolescente. Parado ali, meu adolescer se fez flor, se fez amor. Os meus olhos nunca tocaram tanto amor, ternura, magia e encantos especiais como aqueles.


Extasiado ante tanto esplendor, eu já não me preocupava com mais nada que pudesse me sobrevir de negativo naquele paraíso de cordas, estacas, lonas, bichos e pessoas encantadoras. Era um sonho. Tudo era mesmo um sonho! De onde eu vinha não havia tanta beleza para alimentar os olhos e aninhar a alma de um menino sonhador. As águas roubadas correriam como um rio na minha alma. Águas barrentas, mas eivadas de flagrante beleza, cheias graça, leveza e de um mundo sem fim de desejos no coração.


Ali, entre as cordas eu desejei ganhar o mundo. Sonhos de meninos que se sabem capitães de areias:  viajar, sair por ai levando alegria, paz e fazendo as pessoas felizes. Todavia, eu era só um menino, pendurado numa corda bamba entre abismos. Às vezes, a vida é para nós uma corda bamba entre abismos, nas escarpas do tempo e dos desejos. Eu sentia cá em baixo, do trapézio real de uma vida sem cor, no qual eu projetava o meu corpo, o corpo dos meus sonhos, sentindo aqui, do chão, a mesma fissura emocional que sentem os trapezistas quando estão lá em cima, nos trapézios dos circos. Calafrios meus, sentidos na corda bamba de uma existência pixote. Meninos de rua são assim, ou morrem de desejo, ou matam os desejos, realizando-os ou não.


A aventura findou repentinamente, quando eu, de súbito avistei os meus irmãos e meu primo sendo todos, afugentados dali, daquele mundo maravilhoso. Como “Adão e Eva pós-modernos”, fomos expulsos do paraíso. Tudo no mundo tem um preço, mesmo a felicidade. O mundo capitalista é excludente. Fomos excluídos do mundo da felicidade cara. A nossa felicidade, tínhamos que manufaturá-la, fabricá-la a agulha e linha e assim, desse modo, alinhavávamos os nossos desejos nos retalhos da vida, entre os sonhos e a realidade. O capitalismo é senhor que pune sem piedade. Os capatazes do circo serviam ao sistema capitalista e este (o sistema), em matéria de castração, banimento e exclusão é especialista, selvagem e homérico. Você já viu a face dele por ai? Já sentiu os seus açoites? No circo ou fora dele? Essa vida é um circo onde ratos e homens giram a roda. Onde a beleza camufla a ferocidade e o ódio do mundo.  Hoje eu me lembro com saudade daqueles dias!


Na fuga, o caminho que tomei me levou para um rumo diferente do que tomaram os meus irmãos. Segui para um corredor estreito e no meio do caminho me perdi entre caixas, jaulas e roupas. Foi ai que algo muito especial me aconteceu. Correndo desesperado dos meus perseguidores, eu fui salvo por um dos palhaços do circo. Era um senhor de idade, podia-se ver por trás das máscaras e do chapéu as suas cãs embranquecidas. Ao ver a minha aflição, olhou-me como quem avistava uma ave presa num alçapão e, amistosamente, com um olhar, me indicou um caminho secreto. Um caminho que só ele conhecia. Oculto aos meus olhos. Um caminho que hoje nomeio como sendo um caminho do coração. Mostrou-me uma saída perto da jaula dos elefantes. Eu jamais esquecerei aquele olhar. Aquele palhaço sorriu para mim e nada me disse, apenas assinalou com um olhar e um gesto das mãos, como se disse: “seja livre pequena avezinha”.


Lembro-me do seu chapéu preto, da sua roupa colorida, da sua boca avermelhada, a tinta branca ainda fresca no seu rosto; lembro-me do seu nariz com uma bola vermelha e de seu olhar simples, terno e indulgente. Há olhares e gestos que nos marcam mais que discursos e os arroubos das promessas dos palcos da vida. Eu jamais esquecerei o olhar que me mostrou o caminho, um caminho do coração.  Eu não esquecerei o dia que, pela primeira vez da minha vida, eu, fortuitamente, encontrei um palhaço de verdade, num circo de verdade. Ali eu descobri que os palhaços são homens sensíveis, possuem alma. O capitalismo não matou de todo a beleza.  


Era noite, o Sol já se havia posto, quando saímos esbaforidos, suados e risonhos daquele lugar magnífico. Eu era apenas uma criança leucêmica e faminta à procura de pão, paz, alegria, inclusão e felicidade. A minha mãe jamais soube dessa nossa peripécia. Segredamos isso por muitos anos. Somente agora, aqui no Bravo, sertão da Bahia, visitando a igreja de um amigo, o Magno Souza, para quem eu devoto o meu afeto. Depois de avistar resquícios de um velho circo na rua, caminhando ao lado das minhas filhas, é que minhas recordações me trouxeram esses pensamentos que hibernaram por muitos anos em meu ser. Eu aprendi que pensamentos possuem asas. Pensamentos com asas? Sim! Esses que como aves, migram de longe, voam das cavernas e das montanhas de nós mesmos, riscam os céus de nossos sonhos como borboletas azuis voando em bandos; aves com sementes no bico, para polinizar a saudade na estrada da esperança, nos caminhos do coração.


Aqui do meu lugar, eu sou só saudade, sou só sorriso e em mim, soçobram os meus desencantos pela vida ao relembrar-me o quanto a minha infância foi amável, colorida e cheia de doces aventuras. A criança em mim sente saudade, enquanto o Sol se põe. O adulto em mim fica em silêncio, ante o espelho, enquanto a noite gesta silente mais um novo amanhecer.





Em algum lugar entre as montanhas, as flores e um pequeno Sol, de saudades minhas de fim de tardes idos.





“Dedico este texto a todas as crianças, meninos e meninas excluídos, pelo mundo afora, que sonham um dia viver a verdadeira e mais profunda felicidade”.


Como seria o mundo sem o capitalismo selvagem?





Feliz Natal e um Próspero Ano Novo!

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