Hoje eu acordei lembrando-me de dias belos com lições duras que marcaram a minha vida. Há dias que a gente amanhece com a sensação de quem navega no túnel do tempo. Quem não se lembra da série realizada por Irwin Allen, “The Time Tunnel – O Túnel do Tempo”, estrelada por Robert Collbert: Doug Phillips e por James Darren: Tony Newman, filme no qual, dois cientistas viajavam no tempo, para o passado, caindo no meio das mais controversas situações? Pois é, foi assim que acordei, com essa sensação de flutuar e divagar no tempo, que fui parar na cidade de Cerra Preta, no povoado de Morro do Curral, no interior da Bahia, nas férias de 1979.
O lugar era paradisíaco e minha alma estava afeita àquelas montanhas. O meu ser era arte naquela moldura sempre viva. Ao lado do meu amigo Galego, nome dado por causa da sua tez meio amarela, sarará, avermelhada; naquele tempo, uma cor indefinível. Éramos coetâneos; ele era o meu melhor amigo de infância; crescemos juntos. Eu o defendia a unhas e dentes, pois o tinha, e ainda tenho como irmão do coração. Estar no meio dos seus familiares, era como possuir, eu mesmo, uma família grande e feliz.
Aquela ambiência bucólica ajudou a perfilar a minha alma poética e nostálgica. Eles possuíam nomes de pessoas comuns; a forma de chamá-los distanciava-se muito da forma da escrita de seus nomes: “Vardemar, Tôin, Maro, Jão, Kitute, Elza, Iracy e Magô”. Eles eram todos parentes do galeguinho, irmão meu nascido em outro ventre. Todavia, naquela família a matriarca era Dona Martila. Senhora alta, de olhos claros, espirituosa de dentes fortes. Eu nunca soube o seu nome de batismo exatamente, mas que importa? Em meu coração ela será sempre Martila. O imaginário não quer ser remexido, visto que as velhas cabanas, as velhas ruas, casas e abrigos precisam estar ai onde e como sempre foram; para existirem como lembranças no lugar da saudade num infinito reviver ante o devir do tempo, da estrada e do vento.
Há coisas que são irremovíveis na nossa alma. Permita-me plagiar o ex-ministro do Trabalho, Rogério Magri, figura excêntrica do governo Collor, usando sua inesquecível expressão a qual, acho que cai muito bem aqui e, melhor explica meu sentimento. Há coisas que são imexíveis na nossa alma sonhadora. Não carecem retoques; elas devem estar como sempre foram. Eternizadas em nós, no jeito, no nome, no tipo, na cor, no tom, na fragrância, no estilo e nos defeitos, porque a acepção delas se deu na forma que elas se apresentaram, como sempre foram, são e precisarão ser.
Naqueles dias saímos para uma caçada, fazendas morro-acima. Eu nunca houvera me afastado tanto do povoado. Com espingarda na mão, bodoques, a alma cheia de encantos e um punhado de farofa no saco, fomos nós para a mais doce aventura. Caçamos coelhos, codornizes e nambus. Eu mal sabia distinguir a mão direita da esquerda, tampouco a diferença entre uma perdiz e uma galinha d’angola. Atrás de perdiz, me perdi no meu mundo de giz e cera.
Metido mata à dentro, sobre as alturas dos montes, a farofa era nosso único meio de subsistência, regado por uma moringa cheia de água fresca. Nessa tão encantadora caçada eu não imaginava os perigos que rondavam a minha pobre e desavisada alma. Fortuitamente, eu fui parar inadvertidamente, no meio de uma roça de cansanção, conhecida também como urtiga-brava, cheia de veneno de oxalato, nem sei que diabo é isso, mas sei que dói muito e uma dor horrível. E para completar a desdita, estava pendurado nas suas folhagens um enxame de exu, não o lendário caboclo do candomblé, mas o vulgarmente chamado de marimbondo-de-bunda-amarela, que se me acometeu ruidosa, furiosa e incansavelmente, devia ter parentesco com o outro. Vardemar correu esbaforido para longe; Galego gritava desesperado à distância: “Corre negão! Negão, corre....!”, mas enquanto eu tentava escapar das vespas endiabradas, as urtigas me devoravam encapetadamente. Eu vivi o meu “inferno de Danti”. Eu sei o que é tomar uma surra de cansanção, literalmente.
A aventura da caçada transformou-se em desespero. Inchado, dolorido, prestes a morrer de dor das picadas que ardiam por todo lado no meu corpo, saí alucinado, correndo montanha abaixo. Ao chegar a casa, ao invés de me ajudarem, levando-me às pressas ao pronto socorro mais próximo, o qual distava coisa de algumas léguas do lugar onde eu estava, decidiram passar uma pomada velha e gordurosa, chamada bálsamo benque e esta continha uma mistura de salicilato de metila, cânfora, mentol, essência de terebintina, álcool etílico e propelente. Aquilo ardia em mim como pimenta arde nos lábios ou nos olhos. O caçador foi caçado. Um enxame de enxu me abateu. Assim eu aprendi, que “há dias da caça e outros do caçador”. Paradoxalmente, aquele era o dia da caça caçar o caçador. Eu fui caçado por vespas-de-bunda-amarela e urtigas-bravas ao insólito e impiedoso Sol do sertão.
Desmaiado, adormeci vencido pela dor e no dia seguinte, ainda superando o inchaço, voltei para casa, à casa da minha mãe. É para onde a gente volta depois das tragédias e amarguras da vida. A vida pelo mundo vence o guerreiro, mas não demora, o guerreiro sai novamente, após sarar suas feridas, para viver a mais bela vida pelo mundo. O que temerá nesta vida quem já apanhou até de marimbondos-de-bunda-amarela no meio da urtiga-brava? Moisés ouviu Deus numa sarça e eu, nesse deserto cansanção, saudade e vespas enfurecidas. Lembre-se, às vezes, voltar para casa é a melhor maneira de sarar as feridas do corpo e da alma.
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