O canto dos bem-te-vis me despertou feliz numa manhã de neblina e Sol brando. Acordar assim, ainda é uma raridade nas cidades possuídas de um veludo de poluição e morte.
Por noites a fio, em silêncio, a aboboreira deitou suas ramas em meu quintal. Nasceu ali, livremente, gratuitamente. Elas surpreenderam-nos a todos. Cresceram ai, escondidas do nosso olhar. Não lhes ensinamos nada. Não lhes dissemos nada. Não houve manipulação alguma. Terra e grão, água e Sol, somente.
Assim, logo me vi andando sobre suas folhagens belas e felpudas. Aprendo com as abóboras como nasce e cresce o amor. É simplesmente assim, à luz da lua, à noite ou de dia. Nasce, floresce, frutifica e fica. De suas ramas e galhos brotam outras ramas e galhos, que gestam outros frutos. Desdobramento de quem ama apenas por ser feliz; livre e por ser fruto.
Amor é fruto que se doa; se entregam sem reservas. Inopinadamente estende suas ramas nos quintais diversos. As abóboras são assim, simplesmente amam: crescem, irrompem; migram, espalham-se, se escondem, tomam espaços e fecundam. Acontecem ali em silêncio.
Eu mesmo caminhei na plantação para achar seus frutos. Encontrar frutos requer a procura. Os vi diversos e belos. Três deles eram as primícias. Magia em forma de frutos. Eram mais de vinte quilos diante dos meus olhos. Acariciei-os com o olhar e as mãos. Amei-os, fruto no pé! Sonhei vê-los crescer sem pressa, sem a ânsia da devora frutofágica. Degustação de quem ama o fruto enquanto fruto na plantação e não como comida no prato.
Lembrei-me da poetisa portuguesa, Florbela Espanca quando disse: "É pensando nos homens que eu perdôo aos tigres as garras que dilaceram." O fato é que o destino dos frutos é o estômago ou o eterno retorno para a terra de onde veio. Entropia de frutos deixados para trás. Os frutos vivem e morrem de todo jeito. Frutos eternos são frutos amados. O amor eterniza a tudo.
Foi assim que um novo evento abalou a minha alma. Algum desventurado alardeou pelas ruas a existência das minhas abóboras. Foi o suficiente para que roubadores de abóboras invadissem meu quintal e as levassem para longe do lugar do amor. Ladrões sem alma. Ai eu indaguei a mim mesmo: quem teria falado das minhas abóboras para os tais?
Eu fiquei pensando comigo mesmo, enquanto eu andava no meio das outras abóboras, as não roubadas, quais teriam sido as razões por trás daquela infâmia: inveja? Maldade? Ambição? Fome? Pularam o meu muro, na minha ausência e tiraram de mim o que eu simplesmente amava e estava encantado. Doeu. Fiquei com raiva. Não dormi. Murmurei. Embruteci-me.
Pensei em colocar cercas elétricas, chamar a policia, denunciar, dizer coisas insólitas. Entretanto, logo eu recordei da minha infância. Quantas vezes eu me alimentei de frutos roubados no pé, nos quintais alheios: mangas, sapotis, tamarindos, laranjas, tangerinas, cocos, canas, mas abóboras não. Eram dos frutos os mais doces!
Florbela tinha razão, quando disse: "A vida é sempre a mesma para todos: rede de ilusões e desenganos. O quadro é único, a moldura é que é diferente." Ainda assim, fiquei intrigado, imaginando como seria a prece do ladrão das abóboras ao comê-la com sua família. Poderia ser algo assim:
“Amado Deus, obrigado por me permitir saber e saborear das abóboras do quintal do meu vizinho. Obrigado porque entrei em seu quintal sem ser visto por ninguém. Agradeço também por me permitir ver os três frutos mais belos e transportá-los em segurança para casa. Agora, quero comê-los em paz com a minha família. Obrigado pelo fruto da terra”. Pensando nisto, lembrei-me dos Textos Sagrados que dizem que os primeiros frutos da terra pertencem a IHAWHE. É corbã: oferta ao Senhor. E mais, lá ainda diz que, parte dos frutos na plantação não é para ser colhida, pois pertence aos pobres e aos estrangeiros. Estrangeiros de estranhos. Ladrões aos olhos dos capitalistas? Ai, eu me lembrei imediatamente, dos discípulos de Jesus colhendo espigas no sábado. Jesus disse que Deus é o dono da terra, o Senhor da seara, do sábado e que ele faz frutificar sobre a terra.
Assim, desse modo, sosseguei a minha alma e orei pelo ladrão. “Na verdade ele só queria matar a sua fome”, pesei eu. É claro que ele não entende que do lado de cá do muro alguém estava enamorando-se das abóboras; mas que importa? A fome é assim, ou leva alguém a matar ou mata alguém que não leva. Ah! Doce Florbela! Ainda escuto-a a dizer: "Se penetrássemos o sentido da vida seríamos menos miseráveis."
Teria eu dado aqueles frutos ao ladrão caso pedisse? “Não se rompe impunemente com o passado”, dizia o meu Professor Dr. Merval Rosa. A minha aboboreira continuaria ali, dando frutos bons. Dá-os tanto que não dou conta de apreciá-los doces ou no pé. A gente aprende com as perdas. A vida acaba sendo uma escola de sabedoria e lições de amor. O fruto levado não era meu. Eram as primícias da terra, portanto do Senhor. Mas o Senhor não come abóboras. Caim que o diga! Quem as come são os homens. O Senhor se alimenta da gratidão, da gratuidade e do amor ao próximo. Isso lhe é perfume suave às narinas. Sacrifício de sangue e, portanto, de vida.
Tê-lo-ia eu roubado caso não o desse a quem de direito. Eu teria me tornado ladrão na minha própria posse, segundo o Mandamento. Como o amor, as abóboras continuarão nascendo, crescendo, vivendo e morrendo. Doces como amoras, belas como as manhãs de inverno e encantadoras como o olhar de quem gratuitamente segue por ai, dando o seu fruto, nas trilhas, como meninos que brincam andando sobre trilhos. William Shakespeare entendeu o mistério da vida quando disse: "Sofremos muito com o pouco que nos falta e gozamos pouco o muito que temos." Abóboras roubadas são as abóboras esquecidas no pé.
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