terça-feira, 29 de novembro de 2011

Quixangá A Cidade Das Sombras!

Restam apenas dois dias para findar o mês de novembro de 2011. Minhas recordações me levam para lugares remotos e incomuns na minha alma alada. Vejo-me nas terras de Quixangá, onde passei dias amenos e outros tantos dias tenebrosos. Logo eu aprendi que a vida não é feita apenas de coisas boas. Há dias de luz e outros de trevas densas. É na escuridão que o mundo parece perder a beleza e os homens defrontam-se com os seus medos mais tórridos e horripilantes. Na escuridão habitam os sonhos que ainda não nasceram. Ela é como um buraco negro que oculta a aparência das coisas. Um manto sombrio que anula o olhar de quem deseja ver o outro lado da luz.

A palavra escuridão vem do latim, tenebrosu, e a palavra sombra vem de umbra para falar de um fenômeno que a física define como “uma região escura formada pela ausência parcial da luz, proporcionada pela existência de um obstáculo”. Há um obstáculo para o olhar, quando o coração não vê a luz do amor. Sem amor a vida é buraco negro, escuridão em volta de tudo. A Psicologia Analítica diz que nossas sombras são arquétipos,  nosso ego mais sombrio. O nosso lado mais obscuro. Não bastassem as trevas de fora ainda temos que lidar com as de dentro. Aquelas que segredamos entre o céu e a terra bem como aquelas que nos segredam sob o manto de um luar quebrantado. Vasta escuridão de um inconsciente que ilumina as incertezas. Assombra-me saber que em mim, habitam lugares escuros, escusos, opacos feito habitação de morcegos. Obscurantismos meus e de todos nós.

Os felinos caçam na escuridão; seus olhos são forjados para ver à escuridão. Eu aprendi a enxergar no escuro. O tempo me arrancou os obstáculos da retina e minha alma caça em certeza aluna. Sou caçador de versos na escuridão do pensamento. Procuro as flores, ante o obstáculo da luz. A luz em mim é abrigo, e meu ambrigo abriga o sol. O sol em mim é saudade, posto que a noite sempre vem. Há dias que parecem noite.

Quando criança eu brincava com a minha própria sombra. Era quando eu fica entre a luz e a escuridão. As sombras nascem quando se bloqueia a luz. Quando nos interpomos à luz, parimos sombras. As sombras dançam, ficam disformes, caminham e vergam-se. Sou mera sombra quando o objeto refletido é o amor. Memórias minhas nas parede feitas de afetos como corpos de uma maternidade que reflete o tempo, o vento e a saudade. Eu fiz sombras nas paredes da esperança e como sombra andei brincando de erigir os mundos dos meus sonhos.

            Ainda me lembro da ludicidade de dias turvos, junto aos meus irmãos, quando fazíamos o nosso circo das sombras. Quando envidavamos multiformes animais nas paredes do quarto, com as mãos. Imagens fugazes, ligeiras e dóceis. Isto acontecia quando a noite não nos dava a sua luz. No lugar do medo, da solidão e da superação da mesmice. Estávamos à luz de velas. As velas existem onde as lamparinas se emudecem. Foi Confúcio quem disse, “Até que o sol não brilhe, acendamos uma vela na escuridão”.

Eu e minha irmã criávamos o nosso teatro de sombras com vozes e batalhas viscerais. A fauna e a flora eram nossos objetos sombrios mais freuqentes. Quando fartavamo-nos da lucidez das sombras sorvíamos as nossas próprias acolhendo o mistério. Éramos felizes à sombra e à escuridão. Eu amava quando os apagões aconteciam em Quixangá; tudo mudava à nossa volta. Os labores comezinhos quedavam silentes. Os afarezes do varejo da vida paravam, os eletrodomésticos se calavam, os corpos inseguros, limitavam-se e a casa outrora distante se tornava escuta. A oitiva do amor se dava na escuridão.

O medo de, sei lá o quê, dominava a todos, e não raro, eu, minha mãe e meus irmãos, ríamos a valer. Surgiam ali os contos e cantos mais gostosos. Somente a alma podia ver o que os olhos já não podiam. Eu via a minha mãe protegendo a cria enquanto sorvia em silêncio os seus próprios medos. Os nossos corpos se aninhavam às suas asas e a sua cama se tornava o lugar mais tenro do mundo. havia alegria e casa e uma algazarra na rua, medo exalado de outros corpos que corriam a procura de seus lugares mais seguros. Felizes os que tinham para onde ir. Alguém gritava: “foi geral!”, mas eu ainda ignorante quanto ao significado daquela repentina escuridão, compreendia que tinha sido “Geraldo”. Entretanto, o único Geraldo que eu conhecia, era meu amigo e ele jamais faria aquilo com a gente. O Geraldinho, jamais! Dizia eu. No fundo, eu ficava um pouco grato, embora intrigado, a ponto de um dia me dirigir até ele para agradecê-lo, por apagar de vez em quando a luz da minha rua, e este, sem entender nada, sorria.

Eu tive vários circos de sombras ao longo de minha infância. Na roça, à luz do lampião, nas cidades à luz de postoes e lâmpadas encandecentes, mas nenhuma me marcou tanto quanto à que vi na casa de D. Fulor, amiga da minha mãe. Sempre que podia a minha mãe visitava a sua casa. Sem portas e sem janelas, sem luz elétrica, zona urbana, possuidora de parcos recursos. Era uma casa abandonada. Ela trabalhadora, mulher forte, nordestina, cercada pelo amor de seus filhos, com os quais eu brincava nas horas que passávamos ali. Minha mãe os conhecia e dizia sempre a mim que estva falando do amor de Jesus para eles. Ainda me lembro da pequena Lúcia. Seu olhar altivo, brincando, parecia feliz em meio às ruínas. Seus irmãos ao pé de sue velho pai, doente, tuberculoso, deitado sobre papelões.

          Platão tinha razão, “podemos facilmente perdoar uma criança que tem medo do escuro; a real tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz”.

Eu não sabia o que era tuberculose e suspeito que aquelas crianças também não. Juntos, a noite, íamos para o quarto do seu velho pai que tossia fortes rajadas de sangue, para fazermos o nosso circo de sombras. Pombos, borboletas, onça, cachorro e macaco eram nossas imagens mais preferidas. Enquanto nos distraíamos distraíamos aquele homem solitário que morria aos poucos na escuridão de si mesmo e da pobreza.

Eu não imaginava que a minha mãe levava a luz para as suas almas, naquela escuridão existencial. “Vós sóis a luz do mundo”, disse Jesus. A minha mãe era portadora do fogo, da luz e de fagulhas de esperança. Aquele homem veio a falecer, como falece a luz de uma vela, ao passar dos dias.

A família de D. Fulor recebeu a Luz do evangelho de Jesus Cristo e somente mais tarde, muitos anos depois, foi que eu encontrei a pequena Lúcia, não mais uma menina, mas uma mulher, mãe de filhos, pastora e casada com um pastor, sendo ela mesma, luz para muitos. Foi assim que um dia eu conhcei a força de uma amizade. Eu venho de muitas cavernas. É na escuridão que se faz o homem. Os poetas são rupestres. É na escuridão da vida que nasce o filete de luz, fio de prata, alva cor de um azul que rompe o breu. É da penumbra do ser que nasce a arte, a poesia e o amor. Em meu ser, a escuridão é saudade. É caminhar à luz da lua, é lugar de contos e prosas agradáveis. De que servem as fogueiras sem o mistério da noite? Do que valem as luzes das cidades se o amor que cala o medo já não se pode sentir? “Os verdadeiros amigos são como as estrelas no céu. Eles são mais claros nos tempos de escuridão”, disse Ana Carolina.
           Tornei-me adulto, cresci e hoje vou lidando com as sombras do circo de sombras, que este mundo faz a gente imaginar. Sombras, tudo não passa de sombras de uma luz que insiste em iluminar os homens que se escondem atrás das coisas sem formas e vazias. Em Quixangá as paredes tinham vida durante a noite. Por favor, o último que sair apague a luz, eu insisto em ver a lua. Não me roubem dos olhos o luar.

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