domingo, 22 de janeiro de 2012
Valha-me Deus!
Uma espessa nuvem havia deixado o seu rastro nos céus de ontem. Em Quixangá há céus e céus. Uma inesgotável tela de mares de nuvens e cores azuis, cinzas e um tom rosé, dos vinhos de velhas adegas toscanas. Sabor inesgotável em tons de amor e saudade. Todos os dias acontecem um verdadeiro miracolo! Sob esse céu de fazer rir e chorar, o véu da noite deitou suas brumas e a pele aveludada do sereno repousou em mim, feito um casaco felpudo no inverno dos Andes. De longe, eu ouvi baterem as palmas de alguém, que sem querer, trouxe-me de volta para a realidade, despertando-me do sonho em que eu adejava. E assim, rapidamente, abandonei o balanço da rede que me acolhia em sua concha-útero de descanso da minha lassidão.
A autora de tamanha desventura para a alma que flutuava absorta, resultado de seu enamorar-se com o sol, era uma amável senhora, cujo nome, eu terei que omitir por razões diversas e nobres. Chamá-la-ei aqui de Brave Heart “Coração Valente”, considerando sua luta, sua dedicada e incansável atenção ao bem estar de sua família. Às vezes, as lágrimas brilham, rolam alma abaixo, escorrem pela ternura da face; descem pelos lábios, repousam no coração da boca e, tepidamente dessedentam sorrisos mortos de sede. Era o caso dessa amável senhora.
Eu a acudi com todo o meu empenho humano, pastoral e afetuoso, como sempre faço quando solicitado a socorrer pessoas amarguradas; ela sentia-se como um tapete persa, belo, mas pisado pelos pés de que a dizem amar. Ela era uma frágil flor do sertão, no ápice do seu desespero. Foi assim que a percebi, haja vista o fato de a mesma, transportar em si, uma fonte torrencial de lágrimas, a qual, com certa constância, fazia e o faz ainda hoje, chover lágrimas como águas de um rio impetuoso sobre sua face meiga e já tão sofrida. Para algumas pessoas, sorrir já não é mais uma possibilidade de leveza e calma, é antes, e contraditoriamente, um gemido do corpo que sonha possuir a tão distante amenidade da vida.
Não demoraria muito a que eu soubesse a causa de sua aflição e, meus pés, logo seguissem apressados os seus combalidos passos de matriarca entristecida. Minutos depois, céleres pelas ruas da cidade, seguindo-a no meu carro, eu cheguei a uma casa com aspectos normais na arquitetura, mas lúgubre no seu interior, de cujo coração saiu-me ao encontro uma jovem senhora de compleição digna, mas abatida e sob o manto de um temporal de lágrimas que se fazia forte correnteza naquela olhar acabrunhado, sob a tibieza daquela noite fria que deitava suas raízes nas estrelas.
Feito uma guerreira, aquela mãe, falante e nervosa, agora apostando todas as cartas de sua esperança naquele, aparente e destemido jovem pastor, que mal sabia para onde ia, mas que para ela, era a luz no fim do túnel, o solucionador do problema que aguardava a ambos no andar de cima. Inocente eu caminhava para a cova dos leões.
A escada pela qual eu subia, era dessas que se sobe em espiral, contorcendo corpo, alma e espírito, revirando estômago, pescoço e pernas. Exigiu de mim certa destreza de contorcionismos, porquanto aquela escada mal cabia o meu corpo, mal dava para o meu espírito e alma. A coisa era de tal monta feia que em caso de uma emergência só sairia um e de cada vez caso sobrevivesse, pois era apertado como escotilha de submarino. Se alguém entalasse ali, quem estivesse em cima morreria por lá mesmo, e o de baixo sucumbiria.
Aquela brava senhora subiu e adentrou ao cubículo apertado e calorento. Os meus olhos caçavam possibilidades de rotas de fuga no caso de uma urgência iminente mesmo antes de saberem o que me advinha; as minhas mãos seguravam o corrimão da escada e minhas narinas buscavam ar fresco e vida. Era surreal o quadro que destampava de chofre ante os meus já aturdidos olhos. Lá estava um jovem rapaz, possuído por um espírito maligno, deitado sobre o único móvel do quarto, a cama, resultado de um dia inteiro mergulhado nas drogas.
Tentando acudi-lo e sem noção alguma do que estava acontecendo, aquela amável senhora dizia aos borbotões:
_Meu filho levante que o pastor chegou! – disse ela com voz de mãe carinhosa.
Ela mal sabia que ali não estava apenas o seu filho, mas também, uma casta de animados e desavergonhados espíritos maldosos que torturam e escravizam jovens indefesos. A cena era grotesca, mas não tardaria a piorar. De fato eu nunca gostei de lidar com essas coisas, mas o sacerdócio não é uma vida de fáceis e confortáveis opções, pelo menos não era. Hoy ja nolo se!
_Pastor faça alguma coisa, pelamordeDeus! - dizia ela querendo a solução imediata daquela dantesca situação.
Embaraçado, sem saber por onde começar, eu fiz a minha prece em silêncio. Eu não sabia se se tratava de outros expedientes do cão coxo, o demônio, como briga entre irmãos, ataque de fúria, espancamento de mulher, mas parecia não ser nada disso. Eu estava agora diante do meu desafiante, o titânico gigante Golias, e na mão, somente a pedra da fé, certezas minhas de verões de outrora nos jardins de édens meus, onde passeei com Deus. É diante do demônio que nossa humanidade e certezas são postas a prova.
Aquele belo, mas oprimido e desfigurado rapaz, tomado por uma força absurda, começou a rosnar dardejando. Dentro daquele quartinho de ar rarefeito, eu sem fôlego, respirava o mesmo ar que o capeta. Ali eu vi contrariada a lei da física que diz que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. As pernas do moço ergueram-se na direção do teto. Apoiado apenas pela cabeça e pelo pescoço e, sem utilizar as mãos, a assombração do mal mostrou sua carranca.
Um grito surdiu das suas cavernas guturais e sua já atemorizada mãe, fazia imprecações, chamando por todos os possíveis códigos da semântica sagrada para exorcizar o capeta que parecia desdenhar de tudo aquilo e de nós. Ainda ouça-a gritar um “valei-me minha Nossa Senhora! Valha-me Deus! Em nome do sangue de Jesus, deixa o meu filho, seu desgraçado. Deus é mais! Cão do demônio! Sujeito bandido! Vá de reto Satanás!”.
Era uma riqueza de palavreado em sotaque nordestino, misturando a força de uma fé nascente, a galhardia de uma mãe encorajada com a presença de um jovem pastor em exercício de exorcismo, com conceitos católicos e evangélicos. Aquilo se tornou o que eu chamaria de furdunço! Ela havia recém aprendido a linguagem da batalha espiritual, mas nada que atemorizasse o tinhoso.
Eu confesso que não corri porque eu teria que me jogar escada abaixo e descer aquele apertado S de saída, correndo o risco de entalar ali mesmo. Os rogos da mãe assomados pelos indecifráveis sons guturais, onomatopaicos que estrugiam no quarto fizeram meu coração apequenar-se, murchando como uma flor sob um sol causticante.
Do lugar do medo eu arranquei força para me aproximar da cama e bem baixinho eu disse com autoridade aos ouvidos daquele moço para o que quer que fosse que estivesse alojado nele,
_Deixa esse moço livre agora, em nome de Jesus Cristo de Nazaré!
Eu temi que o demônio fosse nordestino e pensasse que a Nazaré a que eu me referia fosse à cidade baiana chamada e conhecida como Nazaré Das Farinhas. Para a minha sorte, não era, não houve tal confusão. E assim, meu caro leitor, eu voltei pra casa refletindo, em três dimensões: como pessoa, como pastor e como psicanalista. Findo assim, por não ter encontrado um final melhor no momento.
Como pessoa é sempre bom atender os amigos em suas dores mais profundas, chorar com os que choram. Como pastor, compreendi que existimos não para nos locupletarmos das riquezas e da lã das ovelhas, mas para as angústias das pessoas carentes da cidade. Como psicanalista, eu aprendi que não é de bom alvitre, nem sensato, que se saia espavorido por ai, seguindo quem quer que seja, sem antes fazer uma breve entrevista, depois uma sutil anamnese e, finalmente, verificar se é possível o atendimento a queima roupa. Se tais cuidados não forem observados, você pode precisar fazer das tripas coração.
Valei-me Deus! Valha-nos Deus!
Texto e foto de Robério Jesus.
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