quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Para Que Casa Voltará O Filho Pródigo?






A parábola do Filho Pródigo ganhou para mim uma nova e instigante perspectiva. Nada como um novo olhar para as velhas razões que nos firmaram os passos no passado. Os meus pés relutam em andar nos passeios do passado sem avaliar os percalços. Calçadas mortas por onde outros tantos pés já andaram amealhando rumos. João Guimarães Rosa tinha razão quando disse: "Todo caminho da gente é resvaloso. Mas também, cair não prejudica demais - a gente levanta, a gente sobe, a gente volta!... O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem".

Acordei às cinco da manhã irrequieto com não sei o quê. Alguma coisa deixou minha alma insone e atarantada. Reunindo forças, prostrei-me no silêncio do meu corpo orante e calado, orei. Dei-lhe minha nudez como oferta e o meu silêncio como oblação. Sacrifício vivo de um corpo que se sabe inexcusável feitura sua. Não há nada oculto ao Criador e já, ele não precisa de verbos e elaborações religiosas para entender a alma súplice.

O simples estar ali, já lhe anunciava tudo que eu, em meu tenro existir precisava. Minutos depois, ocorreu-me algo que frequentemente ocorre nessas horas de transcendência e espiritualidade. Sobreveio-me um pensamento que eu não pensei. Pensamento não pensado é aquele que a gente pensa como evento do espírito, e não como coisa da razão ou da vontade. É uma força inerente. Uma ideia vertida nos meus pensamentos, mas não pensada por mim.

Foi Albert Einstein quem afirmou que “A mente que se abre a uma nova ideia jamais voltará ao seu tamanho original”. Desse modo, eu fiquei boquiaberto com o advento de uma nova ideia e a possibilidade do pensar esta tão rica parábola sobre a qual, já discursei muitas vezes e da qual, já ouvi muitas e belas mensagens. Desta vez, o que me ocorreu não foi o pensar sobre o filho mais novo, nem sobre a figura sofredora do pai, tampouco a figura legalista do irmão mais velho. Uma nova janela se abriu e por ela passou o vento da graciosidade divina.

Eu já fui pródigo de muitas maneiras e na estrada da vida encontrei a muitos semelhantes a mim. Somos pródigos não somente do dinheiro ou das coisas que possuímos, mas também das emoções, do amor, dos sonhos, das coisas do coração, dos relacionamentos que desgastamos infinitamente e dos nossos próprios sentimentos, quando deveríamos estar bem conosco mesmos, entendendo que não podemos mudar as coisas contra as quais não se pode lutar.

Para descrever o que enxerguei na parábola, se faz necessário reler os versos da parábola do Evangelho de Lucas, resumidamente.

“E disse: “Um certo homem tinha dois filhos. E o mais moço deles disse ao pai: Pai, dá-me a parte da fazenda que me pertence. E ele repartiu por eles a fazenda. E, poucos dias depois, o filho mais novo, ajuntando tudo, partiu para uma terra longínqua e ali desperdiçou a sua fazenda, vivendo dissolutamente. E, havendo ele gastado tudo, houve naquela terra uma grande fome, e começou a padecer necessidades. E foi e chegou-se a um dos cidadãos daquela terra, o qual o mandou para os seus campos a apascentar porcos. E desejava encher o seu estômago com as bolotas que os porcos comiam, e ninguém lhe dava nada. E, caindo em si, disse:

Quantos trabalhadores de meu pai têm abundância de pão, e eu aqui pereço de fome! Levantar-me-ei, e irei ter com meu pai, e dir-lhe-ei: Pai, pequei contra o céu e perante ti. Já não sou digno de ser chamado teu filho; faze-me como um dos teus trabalhadores. E, levantando-se, foi para seu pai; e, quando ainda estava longe, viu-o seu pai, e se moveu de íntima compaixão, e, correndo, lançou-se-lhe ao pescoço, e o beijou. E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e perante ti e já não sou digno de ser chamado teu filho. Mas o pai disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa, e vesti-lho, e ponde-lhe um anel na mão e sandálias nos pés, e trazei o bezerro cevado, e matai-o; e comamos e alegremo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu; tinha-se perdido e foi achado. E começaram a alegrar-se. E o seu filho mais velho estava no campo; e, quando veio e chegou perto de casa, ouviu a música e as danças. E, chamando um dos servos, perguntou-lhe que era aquilo. E ele lhe disse: Veio teu irmão; e teu pai matou o bezerro cevado, porque o recebeu são e salvo. Mas ele se indignou e não queria entrar. E, saindo o pai, instava com ele. Mas, respondendo ele, disse ao pai: Eis que te sirvo há tantos anos, sem nunca transgredir o teu mandamento, e nunca me deste um cabrito para alegrar-me com os meus amigos. Vindo, porém, este teu filho, que desperdiçou a tua fazenda com as meretrizes, mataste-lhe o bezerro cevado. E ele lhe disse: Filho, tu sempre estás comigo, e todas as minhas coisas são tuas. Mas era justo alegrarmo-nos e regozijarmo-nos, porque este teu irmão estava morto e reviveu; tinha-se perdido e foi achado”. (Lucas 15:11-32).

Humberto Rohden, comentando esta parábola disse: “o texto original grego é bem claro quando diz: “A parte da minha natureza (ousia, do verbo einai, que significa “ser”) que me convém (epibállon). Que é que o filho mais novo, talvez de 15 anos, pede ao pai? Muitos pensam que ele tenha pedido a parte dos bens materiais a que julgava ter direito, e o pai teria distribuído entre os dois filhos os bens da família, na medida do direito de cada um. Mas teria um rapaz o direito de pedir isto ao pai? E, se assim acontecera, como se entende que, após o regresso do filho pródigo, o filho mais velho diz ao pai que nunca recebeu nada dele? Se houvesse partilha dos bens, teria o filho mais velho recebido a sua parte, e não se poderia queixar. O texto grego não se refere à partilha dos bens, fala da parte da natureza (ousia) que ao jovem convém. Isto é, o jovem reclama o direito da sua juventude, insiste na sua liberdade pessoal de jovem independente, faz valer o direito de não mais ser criança dependente, mas adolescente autônomo. Pede um modo de vida conveniente (epibállon) a sua natureza de jovem”.

Conquanto, haja razão e sentido nestas conclusões, o meu pródigo olhar de homem pródigo em áreas comuns não relatadas no texto, como todos os outros homens, em todo lugar é pródigo de alguma maneira em sua relação com Deus, sobretudo nas áreas em que esbanjam autonomia e independência de Deus, eu lancei luz sobre as sensíveis mudanças nas igrejas em modo geral que hoje ocorrem decorrentes de uma mutabilidade da essencial relação com o reino de Deus. Melhor que os filhos pródigos de hoje, o filho pródigo do texto, ele teve a sorte de ainda ter tido para onde regressar. Digo isso, porque sei que não raro, encontro-os desgostosos por ai, nas calçadas da vida, pelas ruas, becos e cortiços, feitos à beira, nas bermas da estrada e volta e meia sou encontrado por eles.

A tragédia atual não está no fato de o filho pródigo ter saído de casa e deixado pai, irmão, amigos e a casa para trás, tampouco consiste em ir para a pocilga depois de perder tudo dissolutamente, nem mesmo de cair em si, numa tomada de consciência de pecado, arrependimento e de auto-perceber a desgraça à que foi ou está submetido, antes, o problema consiste na volta. O filho pródigo do texto possuía um lar onde as referências de amor que povoavam suas reminiscências conferiam com os fatos e com a verdade. Voltar para ele era possível, pois o seu pai e as condições reais da fazenda onde moravam ainda existia como lugar afeto, seu nicho afetivo. O lugar amor/abrigo/acolhimento/carinho do seu imaginário ainda existia como lugar geográfico e como realidade possível para o regresso. Não é o que acontece com os pródigos de agora.

Eu cresci na igreja. Ia-se a igreja por motivos de uma profunda relação com o ser de Deus e a vida real. Como disse Rubem Alves, “O que existe de mais sagrado num templo é o fato de ser o lugar aonde se vai chorar em comum”. Foi assim, que aprendi e apreendei o culto, as reuniões e a religião. A casa para a qual o filho pródigo retorna é nas múltiplas interpretações modernas uma metáfora da “Casa de Deus”, o templo, o lugar sagrado onde o Pai, supostamente, espera anelante e para onde o errante pecador deve se dirigir.

O fato é que muitos a compreendem não como um lugar não espacial (o não espaço físico), transcendente e espiritual que indica a comunhão com Deus e a devoção que se pode ter com ele alhures, mas limitam-se aos templos feitos por mãos de homens, sobre os quais as Escrituras dizem: “Deus não habita em templos feitos por mãos de homens”. E, como definiu o autor acima citado, quando falava sobre a sacralidade do mistério da vida, “(...) É isso que se sente de manhãzinha, sozinho, ao caminhar pelos campos de capim-gordura. Não há igreja, templo ou santuário que se lhe compare. Essas caixas de tijolo e cimento que os empresários da religião constroem para engaiolar o sagrado, na maior parte das vezes provocam-me o sentimento oposto, de horror estético. Deus deve ter muito mau gosto”.

Os pródigos de agora e eles são muitos, chamam-nos até de “desviados”. Eu, pessoalmente, conheço a muitos que desviados estão de Deus e que nunca se afastaram do altar. E conheço a muitos que clamam a Deus em espirito e em verdade sem nunca terem entrado num templo, ou dado um dízimo ou feito uma campanha de prosperidade. São pródigos dentro dos espaços sagrados. Mera beleza de corpos sem alma. Vivem em nome de Deus, mas de Deus nada possuem.

E contrariamente, já vi muitos “homens santos” desabrigados, desinstalados, lançados nas pocilgas da vida, por motivos fúteis e por não concordarem com as regras capitalistas dos chamados “irmãos mais velhos”, os donos de igrejas.
Para onde voltariam os pródigos de agora? Se minha análise está correta, a cancela ou porteira de outrora, entreaberta a espera do filho mais moço, agora está com uma placa enorme, estabelecendo o território da denominação e da dominação de uma convenção religiosa e tem uma portaria dizendo, “condomínio fechado”, e quando não, há cobrança de ingresso para os egressos. Arrendaram o terreno do reino de Deus e montaram suas fábricas de ídolos e pilharam suas barracas. O pai que na parábola é um sofredor, ser afetuoso e cheio de esperança foi posto pra fora da fazenda, ou da casa. Está nas ruas. Tenta reencontrar seus pródigos filhos em outros arraiais. Em todo lugar há um imperadorzinho, tirano de terno e gravata, de batina ou vestes clericais ditando as regras e as ordens sob a égide de um estatuto que reza estar tudo ali, “sob nova direção”, lutando mara manter seu status quo e sua posição de líder.

A terapia do amor tem um preço. Abraços agora só são possíveis em se havendo pagamento adiantado. As sandálias novas para os pés feridos custam menos que as vestes, mas tem um preço no bazar comunitário do mercado da fé. Nada é de graça. Coisas da desgraça da graça. Ou melhor, a graça é posta em desgraça por causa de mercadores da ambição. Eles estão ali, compram e vendem tudo. O culto resumiu-se ao mercado e Mamom é adorado sob o pretexto de se cultuar a Javé. Mataram a Javé quando este os fez engolir o bizarro bezerro de ouro. Javé caiu em desuso, pois não gosta de pendentes de ouro, prata para si.

O bezerro cevado (animal sagrado para a elite sacerdotal) é comido pelos poderosos na montanha, enquanto o povo sobrevive a pão seco e sopa de letrinhas em nome da devoção e da renúncia. Para não dizer que não comeram H. Um poeta baiano disse que o “eterno deus MU dança”. Quem dança mesmo é o desavisado que não pensa. Os filhos pródigos já nem podem celebrar o retorno, visto que as novas liturgias não permitem a alegria do povo que dança. Os trabalhadores da fazenda ou estão sendo explorados e mortos ou estão sendo condescendentes para não morrerem em nome de Deus. Uns já até se apossaram de sua gleba de terra, pois afinal de conta, isso é o que interessa.

O irmão mais velho não só matou o pai dentro de si, como o expulsou da propriedade fechando as portas para que o irmão mais novo nada leve caso queira voltar e ainda pague a dívida que deixou quando levou o que era seu. E assim, se cumpre a máxima da religião moderna, “ao que não tem até o que tem será tirado”. Você pode estar pensando que esqueci o principal, o anel. Não, de jeito nenhum. A marca da aliança. Esse é de ouro. Está nas mãos dos togados ou dos arrendatários da fazenda a “casa do Pai”. Tornou-se símbolo de autoridade e legitimação da inerrância dos ditadores da nova ordem. Sinete da perfeição.

É claro que isso nos traz indignação. Da pocilga o filho pródigo quer voltar pra casa e não para outra. O lugar afeto precisa ser restaurado. O sentido do acolhimento puro e simples, por amor, precisa restaurado. O Pai precisa voltar a receber seus filhos da varanda. O problema da nossa geração é que além de filhos pródigos, a religião mercadológica, pródiga, milagreira, humanista e cheia de fetiches tornou o próprio Deus alguém que de seu lugar saudade anela retornar para casa.

O filho pródigo continha banido, ao lado do Deus, também banido dos espaços culto, pois seus irmãos mais velhos, os falsos justos, se apropriaram de tudo e do lugar de sua infelicidade, satanizam a tudo; vendem, compram e negociam a fé dos mais fracos e prometem-lhes a vida abundante, enquanto se locupletam de tudo. Vai aqui uma mensagem aos que se sabem desejosos de saírem das pocilgas existenciais.

Cuidado, ao voltar para a casa, verifique se é mesmo a casa do Pai. Não ente em qualquer porteira aberta. Não volte para a casa, ela foi saqueada e está nas mãos de salteadores. Deus fez o seu abrigo ao pé do adorador. A sua herança é uma flor, lugares simples, um campo verdejante e um coração quebrantado. Deus está no caminho e a caminho. Jesus disse que transformaram a casa de seu Pai, a casa de oração em covil de salteadores. E ainda, ele disse, “Nem nesse monte nem naquele. Os verdadeiros adoradores adorarão ao pai em espírito e em verdade”. “Entra no teu quarto, fala com o teu pai que está no céu que ele te ouve e te vê”.

O filho pródigo quis voltar porque sentiu saudade. É a saudade que move os amantes. Se você sente saudade de Deus, chame por ele. Ele virá ao seu encontro. É na realidade da pocilga que ele encontra força e alento para voltar para casa, o seu lugar em Deus. Ele só pôde cair em si porque o dedo de Deus o tocou a alma que sonhava. É na lembrança de Deus que habita a força que nos levanta. Eu sinto saudade de Deus e na neblina da noite o encontro sobre o altar que erigi na solidão do meu quarto. Foi Jesus quem disse que “Nem só de pão viverá o homem”, nessa vida, além da Palavra de Deus, o homem viverá da saudade de casa. A sua eterna morada em Deus!


Texto de Robério Jesus.

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