Eu admiro os cães porque são belos. Sabê-los todos belos e possuidores de várias competências é coisa que exige um dedicado e requintado estudo. Há cães dóceis como os poodles, caçadores como os Pointers, inteligentes como os são-bernardos, ferozes como os chow-chows e os pit bulls; brincalhões como os labradores, hábeis como os cocker spaniels e até, cães notáveis e famosos como Lesse, Scooby-Doo, Marley, a cadela Baleia do romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos e outros tantos que levam a vida como profissionais de circos, e ainda, há os que fazem parte das corporações policial pelo mundo afora, como o conhecido Rin Tin Tin e Max. Eu aprendi que cães felizes, alegres são cães que devolvem afeto.
Não era incomum na minha infância ver muitos cães mendigos. Estes eram aqueles que passavam o dia inteiro na porta do mercado ou dos açougues pleiteando numa disputa mortal por um osso.
Eu assisti a batalhas titânicas. Cães com instinto assassino, vagabundos, indomáveis e sem donos; violentos porque foram violentados. Cães fétidos, vestidos de uma pelagem suja e com visíveis feridas pelo corpo, esperando a morte chegar. Outros houvera que venciam os seus dias como ébrios nos cantos ou portas de botecos, esperando que fortuitamente, alguém lhes desse um naco de pão, mortadela, requeijão ou qualquer outra coisa que lhes saciassem a fome. Eram cães pulguentos, indolentes. Eu mesmo conheci alguns pelo nome de batismo: Relógio, Piau, Flick, Don e Ravel e mesmo aqueles dos quais cantou Luiz Gonzaga em Samarica Parteira, cachorros vira-latas, cães da roça e de raça que corriam atrás do gado, ao lado dos vaqueiros, com nomes esquisitos:
“Um rancho, rancho de pobe...
- Au au!
Cachorro de pobe, cachorro de pobe late fino...
- Tá me estranhan'o cruvina?
Era cruvina mermo. Balançô o rabo.
Não sei porque cachorro de pobe tem sempre nome de peixe: é cruvina, traíra, piaba,
matrinxã, baleia, piranha.
Há! Maguinho mas caçadozinh' como o diabo!
Cachorro de rico é gooordo, num caça nada, rabo grosso, só vive dormindo.
Há há ... num presta prá nada, só presta prá bufar, agora o nome é bonito: é white, flike, rex,
whiski, jumm. Há! Cachorro de pobe é ximbica!”
Por esses dias, no entanto, eu notei num soberbo flagrante, que existe uma falange de cães que estão mais para PCC e CV canino do que para uma simples canzoada de rua. Cães perversos, de índole torpe, perfil de mau caráter e ardilosos. Por que digo isso? Eu pensava que banditismo, agressividade e covardia fossem coisas dos seres humanos apenas, os encontrei também entre os cães vadios da minha vizinhança.
Era noite e eu vinha ouvindo o rádio do meu carro numa rua escura, que de alguma maneira escondia a vida e a morte de outras ruas claras próximas à minha casa, cheias de olhares repentinos e sub-reptícios. Foi assim que ao entrar na curva e as curvas sempre revelam velados segredos. As esquinas escondem as sombras e as assombrações. Eu avistei, aturdido, à matilha, uma malta de cães ruidosos e raivosos devorando sua presa. Eram doze contra meio. Pois aquele cão enorme punha a sua pata dianteira direita sobre o peito do cãozinho inofensivo, vencido, ultrajado, mordido e de honra destruída, deitado de barriga para cima, cercado pelos outros onze algozes seus, os donos da rua.
Desesperado e impotente, o cãozinho chorava, enquanto os outros se riam. Pareciam rir da miséria alheia. No meu desvario inopinado, acometi-lhes com o meu carro sem pestanejar, mas temi ferir o pequeno pobre coitado. A ideia de socorrer um desvalido e fraco cão me percorreu as veias e de súbito, arremessei o veículo sobre aquela farândola canina, que logo se evadiu, deixando o cãozinho em paz, momentaneamente. Todavia, assim que eu olhei para o retrovisor, avistei a refrega humilhante sobrevir ao desvalido que agonizando, gemia sem esperança alguma de salvação.
Os agressores eram cães feios, maltrapilhos, sujos, cujo líder psicótico e valentão punha novamente a sua pata suja e onipotente sobre o peito de sua pobre vítima. Eu suspeito que o abandono seja uma coisa ruim que transforma os homens e até os bichos. Desprezados, maltratados e largados ao relento à sua própria sorte, a natureza dócil e inofensiva de qualquer indivíduo assume drasticamente a selvageria e comportamento violento que num habitat naturalmente confortável e de acolhimento jamais desenvolveria mesmo nos irracionais. Cedo aprendi que os cães refletem os seus donos.
Como psicanalista de pessoas e observador dos bichos, ouso a dizer que os animais refletem seus donos. Aqueles são reflexos destes. Eu gosto da figura bíblica de Noé. O seu poder de atração e cuidado pelos animais parecia ser tão grande que o Criador decidiu confiar-lhe a vida e o destino dos mesmos na sua arca. No dilúvio Deus se importa com os bichos pela dignidade e destrói os homens pela bestialidade.
Por esses dias alguém me perguntou: “Pastor é errado orar pelos nossos animais de estimação?” E ainda, “Podemos pedir um milagre em favor deles?”. Eu disse “não” para a primeira pergunta e “sim” para a segunda, visto que, com a suspeição teológica que acompanha a minha lógica interpretativa, da narrativa do Gênesis, compreendendo que se Deus fez os animais e os fez Nefesh Haia, ‘alma vivente’ como nós, povoou a terra com eles, antes de coloca-los no Éden, pois Ele tem carinho pelas coisas mais tenras, criadas por Ele mesmo.
Há uma característica nos cães que me fazem pensar. Os cães são fiéis. Fidelidade canina é sempre um mote de bravura e louvor. Eu sou um homem de poucos amigos. Trago em mim, por força das circunstâncias da vida, um traço da fidelidade canina. Sou amigo dos meus amigos. Entretanto, transporto uma dor que como azougue, insiste em permanecer como uma marca presente na minha história. Os meus amigos, salvo raras, raríssimas exceções, não possuem fidelidade canina. Dai o meu naufrágio no mar da sociedade. Tornei-me habitante da ilha da solidão. Devoro minha solitude como o último fruto doce da última estação de frutos. Faz tempo que parei de andar em bando. As matilhas já não são mais confiáveis.
Não sei se foi uma identificação projetiva o que me comoveu naquela cena em que o cãozinho estava sendo esmagado pelos cães grandes, covardes e agressivos. Suspeito que sim. Há mais fidelidade entre os cães do que entre os homens. Foi Thomas Hobbes quem disse: “Homo Homini Lupus” – O homem é lobo do homem – para falar de sua condição de predador de si mesmo e dos outros. Estamos num mundo onde homens e cães se parecem. Os cães de agora possuem o espírito das alcatéias. Herdaram dos lobos a selvageria necessária para esmagarem outros, seus iguais, indefesos, por razões de uma simples micção (palavra bonita para falar do ato de mijar) na funesta demarcação de território. Até os cães querem poder, autoafirmação, liderança, disputa pelos odores das fêmeas e o desesperado ato de sobrevivência. Uma espécie de capitalismo canino. Há empresas, pessoas, governos, líderes e partidos que vivem em plena selvageria canina.
O capitalismo subjugou a algumas instituições publicas e particulares, a associações politicas e religiosas, ao mercado e a algumas empresas a se tornarem verdadeiros canis. Cães outrora domésticos tornados selvagens na alma, nas relações interpessoais e na prática do trabalho. Como os cães selvagens tento seguir os meus instintos aguçados, visto que sobreviver sem agressividade já não é possível, entretanto, tento ainda manter em mim a doçura dos domesticados e de estimação, aqueles que justificam a fama de que são conhecidos como ‘melhores amigos do homem’. Adoro os cães porque fiéis, dóceis, hábeis, inteligentes, amigos e não ameaçadores; odeio a tudo que se chama injustiça, quer no reino humano ou animal. Para muitas pessoas, a vida se tornou uma verdadeira vida de cão.
Texto de Robério Jesus.
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